A primeira colectânea de poemas de Herman Melville (n. 1819 – m. 1891) surgiu em 1866, 20 anos após Typee (1846) - o aclamado romance de estreia. Battle-Pieces and Aspects of the War, assim se intitulava o poemário, apareceu já numa fase de insucessos editoriais consecutivos, dos quais destacamos duas obras-primas que apenas viriam a merecer o devido reconhecimento após a morte do autor: Moby-Dick (1851) e Bartleby, the Scrivener (1853). Para a antologia que a Assírio & Alvim publicou recentemente, Mário Avelar seleccionou e traduziu um apreciável conjunto de poemas a partir da obra supracitada, juntando-lhe outros retirados de John Marr and Other Sailors (1888) e Timoleon, Etc. (1891). Na nota prévia explica-se o intento de «uma perspectiva prismática» sobre a obra poética de Melville, a qual permaneceu esquecida durante muitos anos. De resto, o mesmo se pode dizer de toda a obra do autor de Moby-Dick. Se hoje o lembramos como um dos nomes maiores da literatura universal, isso deve-se apenas à força das suas palavras.
Ora, sem pretender aventurar-me em dispensáveis especulações psicologizantes, e estando ciente de uma longa tradição de poesia de guerra oriunda dos Estados Unidos da América, creio que os poemas de Fragmentos de Batalha e Aspectos da Guerra transcendem as preocupações patrióticas e os conflitos morais que definem grosso modo a elegia de guerra. A guerra pode ser interpretada sob vários prismas, nomeadamente sob o prisma de quem busca a glória através de um acto que deseja ver-se inscrito na história. Ela é o cenário daquele que se aventura para lá das suas forças, daquele que procura ultrapassar-se a si próprio mas acaba paradoxalmente ultrapassado pela vanidade e pelo esquecimento. Melville pôde constatar por si próprio as injustiças da História. Das aventuras ao sucesso, do sucesso ao esquecimento, a sua biografia faz-nos pensar nas expectativas do guerreiro perante os desconhecidos mistérios da batalha – aludo a The March Into Virginia, Ending In The First Manassas, poema que ficou de fora desta selecção.
O sentimento de transitoriedade patente na obra melvilliana coincide com as expectativas e os sentimentos do escritor que se viu relegado para o olvido após breves momentos de fama. Não podemos fugir à tentação de observar uma alegoria onde provavelmente ela nunca existiu, de descobrir um símbolo onde provavelmente ele não foi desenhado, mas existem inegáveis afinidades entre a obra e a vida do autor. Isso nota-se, inclusivamente, na relativização da força quando sobre «o mais poderoso barco da esquadra do Norte» Melville escreve: «Combateu e afundou-se» (p. 15). A fama desse navio há-de sobreviver à desventura, há-de persistir na história para lá do fracasso, «pois assim é devido» (p. 17). A palavra fama, que se repete como uma vaga recorrente, envia-nos para uma máxima do Ismael de Moby-Dick: «Tudo é vaidade». TUDO. O leitor desprevenido tenderá a encontrar aqui ecos de uma ambição desmesurada, mas o mais atento saberá ver para além da ponta do nariz. O que aqui está em causa é a relativa importância dos homens, cuja força é nenhuma ao pé da capacidade de regeneração dos ulmeiros, cuja importância é nenhuma ao pé da palavra que pode imortalizar.
Até o homem mais temido e corajoso acaba enterrado, restando-lhe uma canção que o possa recordar nos dias vindouros. «Sim, o homem é viril» (p. 27). Justiça se faça a quem não caiu em vão, justiça se faça a essa virilidade, que «o hábito do desespero» (Jorge Luís Borges) não enfraqueça a esperança. No entanto: «Pela força da sua própria inércia / O impetuoso barco, perplexo, se afundou» (p. 57) - canta o poeta num belo poema onde perante a impassibilidade de um icebergue nem «um barco de porte marcial» resiste. Numa época em que a fé desmesurada na razão desviou o homem definitivamente da natureza, em que a enfatização das capacidades humanas deslocou o deslumbramento para o poder das máquinas, Herman Melville procurou recolocar o homem no seu devido lugar. E o lugar do homem é o daquela personagem no quadro de Caspar David Friedrich, voltado solitariamente para a imensidão do oceano, posicionando-se respeitosamente perante a agitação das vagas, como que contemplando a sua própria insignificância no poder incomensurável das forças da natureza.
Escrito para o Rascunho.
Ora, sem pretender aventurar-me em dispensáveis especulações psicologizantes, e estando ciente de uma longa tradição de poesia de guerra oriunda dos Estados Unidos da América, creio que os poemas de Fragmentos de Batalha e Aspectos da Guerra transcendem as preocupações patrióticas e os conflitos morais que definem grosso modo a elegia de guerra. A guerra pode ser interpretada sob vários prismas, nomeadamente sob o prisma de quem busca a glória através de um acto que deseja ver-se inscrito na história. Ela é o cenário daquele que se aventura para lá das suas forças, daquele que procura ultrapassar-se a si próprio mas acaba paradoxalmente ultrapassado pela vanidade e pelo esquecimento. Melville pôde constatar por si próprio as injustiças da História. Das aventuras ao sucesso, do sucesso ao esquecimento, a sua biografia faz-nos pensar nas expectativas do guerreiro perante os desconhecidos mistérios da batalha – aludo a The March Into Virginia, Ending In The First Manassas, poema que ficou de fora desta selecção.
O sentimento de transitoriedade patente na obra melvilliana coincide com as expectativas e os sentimentos do escritor que se viu relegado para o olvido após breves momentos de fama. Não podemos fugir à tentação de observar uma alegoria onde provavelmente ela nunca existiu, de descobrir um símbolo onde provavelmente ele não foi desenhado, mas existem inegáveis afinidades entre a obra e a vida do autor. Isso nota-se, inclusivamente, na relativização da força quando sobre «o mais poderoso barco da esquadra do Norte» Melville escreve: «Combateu e afundou-se» (p. 15). A fama desse navio há-de sobreviver à desventura, há-de persistir na história para lá do fracasso, «pois assim é devido» (p. 17). A palavra fama, que se repete como uma vaga recorrente, envia-nos para uma máxima do Ismael de Moby-Dick: «Tudo é vaidade». TUDO. O leitor desprevenido tenderá a encontrar aqui ecos de uma ambição desmesurada, mas o mais atento saberá ver para além da ponta do nariz. O que aqui está em causa é a relativa importância dos homens, cuja força é nenhuma ao pé da capacidade de regeneração dos ulmeiros, cuja importância é nenhuma ao pé da palavra que pode imortalizar.
Até o homem mais temido e corajoso acaba enterrado, restando-lhe uma canção que o possa recordar nos dias vindouros. «Sim, o homem é viril» (p. 27). Justiça se faça a quem não caiu em vão, justiça se faça a essa virilidade, que «o hábito do desespero» (Jorge Luís Borges) não enfraqueça a esperança. No entanto: «Pela força da sua própria inércia / O impetuoso barco, perplexo, se afundou» (p. 57) - canta o poeta num belo poema onde perante a impassibilidade de um icebergue nem «um barco de porte marcial» resiste. Numa época em que a fé desmesurada na razão desviou o homem definitivamente da natureza, em que a enfatização das capacidades humanas deslocou o deslumbramento para o poder das máquinas, Herman Melville procurou recolocar o homem no seu devido lugar. E o lugar do homem é o daquela personagem no quadro de Caspar David Friedrich, voltado solitariamente para a imensidão do oceano, posicionando-se respeitosamente perante a agitação das vagas, como que contemplando a sua própria insignificância no poder incomensurável das forças da natureza.
Escrito para o Rascunho.
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