sexta-feira, 31 de julho de 2009

JARL E OS NAVIOS / HERMAN MELVILLE

No fim de cada romance abandonei um navio. E hoje, aqui sentado — com o esquecimento e a indiferença dos homens tolhendo-me o peito — o último navio que vou abandonar é o meu próprio corpo.
Levanto os olhos destas linhas e sussurro:
— Sol, antigo piloto, sê o meu guia nesta derradeira viagem.
A luz frouxa do candeeiro amarelece o papel onde escrevo. Os mares, e a minha vida, também adquiriram essa cor que se derrama agora no fundo da memória.
Recosto-me na cadeira. Largo a caneta, pouso-a sobre a mesa para impedir a mão de continuar o seu ofício.
Deixo os navios dos meus livros zarparem do pensamento, fico a vê-los aportarem, enfim, aos serenos túmulos marinhos.

Sobre o mar abate-se uma sombra sinistra. Envolto nessa sombra flutua o Arcturion. Dele me recordo com veemência.
Um navio não é uma coisa inerte, é um ser vivo. Todo o marinheiro sabe isto. Quando se está ao leme, sente-se a pulsação do seu sangue. Por isso houve navios e homens que amei com a mesma intensidade.
Velho Arcturion, onde flutuarão os teus destroços? Em que tempestade terrível naufragaste?
Nunca mais me chegaram notícias tuas. Ouço somente o grito estridente das gaivotas rodopiando à tua volta, enquanto a planície aquática se fende e te engole.
Vejo-te desaparecer nas profundidades silenciosas de um mar de Verão. Ou terás tido melhor sorte?
No meu pensamento pereces na luta sem tréguas contra a fúria das vagas. As velas enfunadas rompendo-se, o timoneiro agarrado ao leme com unhas e dentes, os marinheiros nos seus postos, atentos à voz do capitão... mas é inútil continuar a pensar em ti.
A quilha pode ter rebentado contra um recife. O teu destino continua a ser um mistério.
Peço a Deus que a alma deste navio perdido, navegando na bruma dos nocturnos furacões, não visite — como um fantasma — as minhas futuras viagens.
Desejo que repouses no fundo do oceano, Arcturion, em sossego eterno, e que a tripulação durma em lugar inacessível aos tubarões e ao tumulto das vagas.
A última vez que pensei em ti avistei-te no meio duma noite sem luar. Havia no ar — como é frequente no Equador — uma névoa violeta que tapava o firmamento. Apareceste-me como um fantasma no meio do sono, e pensei que também eu era já um fantasma.
Acreditar que se está morto é tão desagradável quanto o estar na verdade. Fica-nos o sentimento de que o nosso fantasma habita ilegalmente um cadáver. ..
Jarl visitou-me a meio da tarde. O seu olhar continua a perturbar-me, como outrora me perturbou. Peço-lhe para desviar o seu olhar do meu.
Tínhamos fugido numa baleeira roubada durante a noite. Navegávamos à deriva. Havia dois dias que singrávamos um mar fosforescente. Jarl dizia que era a agitação das sereias, cuja cabeleira dourada, espalhando-se, acendia as águas.
Talvez encontrássemos ilhas a Oeste.
O oceano estendia-se, como se estende agora no meu pensamento, até ao infinito — e Jarl bebia abundantemente, como o fazem os homens dotados duma alma extraordinária.
Embriagado, disse-me:
— O ódio é feio, só se deve odiar o ódio.
E tão cedo, lembro-me, não encontrámos qualquer ilha.

Pus-me a ler-lhe o que acabara de escrever: ...os diários de bordo dos baleeiros estão repletos de desenhos. Quando avistamos uma baleia e não a conseguimos capturar, o desenho representa os contornos da cauda do monstro. Mas quando a baleia foi perseguida e morta, os contornos da cauda são cheios a tinta-da-china — de modo a verem-se imediatamente, assim que alguém os folhear.
Por vezes, vêem-se 3 ou 4 destes desenhos negros na mesma página indicando, assim, que outros tantos monstros pararam, nesse dia, de lançar o seu jacto de água...
Interrompi-me um segundo, para tomar fôlego. Depois, li: naquele dia Tooboi mergulhou nas águas calmas para se refrescar. Foi devorado por um tubarão.
Afastei-me, por fim, cansado, do círculo da luz. Arredei a cadeira para um canto penumbroso da sala. Fechei os olhos e ouvi, longe, a voz de Jarl:
— A verdade encontra-se nas coisas, não nas palavras. A verdade não precisa de palavras.
E, de seguida, senti os seus dedos tocarem-me ao de leve, enchendo de tinta negra os contornos da minha cabeça.



Al Berto, in O Anjo Mudo, 2.ª edição, pp. 116-119, Assírio & Alvim, Outubro 2001 (exemplar trocado com a Ana Salomé).

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