O GATO VENEZIANO
Para a Maria João
no dia do seu aniversário
Ordet que te trago à mesa :
o ronronar do gato veneziano
apanhado a engolir um piano
de cauda demorada.
Parecia morto naquele soalho
turístico de Agosto a 40 graus.
Quando o vi pensei nos cegos,
sempre mortos do lado errado.
E se soubesse tocar piano
tinha espalhado todo aquele negro
pelas teclas brancas do teclado.
Como sou fraco de dedos para tudo
que não meta mortalhas e rosas,
ataquei duas talhadas de melancia.
É como diz o poeta: há que aproveitar
«bem o tempo antes que
comece o passado
a parecer-te
mais longo que o possível futuro.»
E como ela era boa, a melancia,
noite por dentro do dia,
fresca, líquida, esplendorosamente clara.
Quanto ao gato, passei-lhe o flash
pelo pêlo
e vim embora de gôndola
a pensar nos cegos de Lisboa
que não têm zelo
nos pianos servidos à mesa da palavra.
Notas: Ordet
remete para o milagre A Palavra (1955), do realizador
dinamarquês Carl Theodor Dreyer. O segundo verso da primeira estrofe foi
decalcado de Artaud: «Morto, morre-se do lado errado, não é a via que devemos
tomar». Os quatro últimos versos da terceira estrofe aparecem no
poema carta a uma iniciante, de Alberto Pimenta.
Henrique Manuel Bento Fialho, in “só à
noite os gatos são pardos – textos inéditos de autores contemporâneos”,
organização de Jorge Velhote e Patrícia Pereira, prefácio de Sara Canelhas,
ilustração de Ricardo Ayres, Cantinho do Tareco – Associação de Protecção
Animal, 2009 [?], pp. 31-32.
Poemas
e textos de A. Dasilva O., Alexandra Malheiro, Amadeu Baptista, Ana Luísa
Amaral, António Barbedo, António Ferra, António José Queirós, Aurelino Costa,
Bruno Breu, Carlos Lizán, Carlos Poças Falcão, Cristina Carvalho, Diogo
Alcoforado, Fernando de Castro Branco, Fernando Echevarría, Francisco Duarte
Mangas, Gabriel Mário Dia, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Lourenço, Isabel
Cristina Pires, João Manuel Ribeiro, Jorge Velhote, José Álvaro Afonso, José
Emílio-Nelson, José Leon Machado, José Miguel Braga, José Viale Moutinho, Luís
Filipe Cristóvão, Luísa Ribeiro, Maria do Carmo Serén, Mário Anacleto, Nuno
Dempster, Renato Roque, Rosa Alice Branco, Rui Amaral Mendes, Rui Lage, Sara
Canelhas, Soledade Santos, Tiago Worth Nicolau, Teresa Tudela, Vergílio Alberto
Vieira, Victor Vicente, Vítor Oliveira Jorge.
no dia do seu aniversário
o ronronar do gato veneziano
apanhado a engolir um piano
de cauda demorada.
Parecia morto naquele soalho
turístico de Agosto a 40 graus.
sempre mortos do lado errado.
E se soubesse tocar piano
tinha espalhado todo aquele negro
pelas teclas brancas do teclado.
que não meta mortalhas e rosas,
ataquei duas talhadas de melancia.
É como diz o poeta: há que aproveitar
«bem o tempo antes que
comece o passado
a parecer-te
mais longo que o possível futuro.»
noite por dentro do dia,
fresca, líquida, esplendorosamente clara.
Quanto ao gato, passei-lhe o flash
pelo pêlo
e vim embora de gôndola
a pensar nos cegos de Lisboa
que não têm zelo
nos pianos servidos à mesa da palavra.
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