sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O LIVRO DAS CASAS ABANDONADAS




Acordei melancólico, começo a projectar o fim da ópera de grilos e cigarras que me tem vindo a embalar noite dentro. Aproxima-se vertiginosamente, com ele a angústia do regresso e de mais um ano a contar os dias que faltam para a partida. A mesa do alpendre onde vou conquistando quilómetros de frases à “montanha mágica” e escrevinho estes apontamentos está decorada com tomates (coração de boi?), pimentos, uma melancia e uma couve enorme. A couve alberga algumas joaninhas, o que é bom sinal. Que ninguém tome as joaninhas por parvas. É uma boa couve, só não sabemos o que fazer com ela. Talvez venha connosco para cima, talvez se converta em sopa, talvez. Há alguns excessos que vão ter de conhecer a via verde do progresso. Falta-nos a porca Rosita para dar cabo dos restos, uma gorda e voraz porca preta que vivia nas traseiras da mansão. É provável que tenha sido transformada em bifes e em enchidos. Resta-nos uma pocilga, outra casa abandonada, ocupada agora por aranhas que formam rigorosos padrões geométricos nas paredes mais claras. Vou-me entretendo no encalço das vacas, apanho amoras, pico as pernas, afasto as vespas, coço as picadas dos mosquitos, escrevo O Livro das Casas Abandonadas. Passei a noite a sonhar com enxames de abelhas, colmeias pontapeadas inadvertidamente, terramotos, perseguições. Enfim, acordei melancólico. Vingo-me nas leituras. As Novelas do Minho, de Camilo Castelo Branco, começam bem: «o estreme espírito português, por mais que o afiem e agucem, é sempre rombo e lerdo»; o Bill Bryson apresenta-me um reverendo que acreditava que «o consumo de carne conduziria a uma espécie de desequilíbrio hormonal que levaria os homens a aproveitarem-se das mulheres dóceis»; Henry David Thoreau lembra-me que «as nossas boas maneiras corromperam-se com os santos»; Boris Vian arranca-me um sorriso: «As palavras e os peidos têm em comum o facto de serem volumes de ar que saem das extremidades do tubo digestivo»; em Edgar Allan Poe busco o consolo dos mestres: «E não me importa o tempo que se esgota / Porque bebo cerveja todo o dia». E as aventuras de Hans Castorp, esse inquieto filho da civilização, ficaram muito mais estimulantes depois da entrada em cena do professor Naphta. As intermináveis contendas com Settembrini, o maçon, revigoram a narrativa. Desconfio que as descrições no subcapítulo intitulado Neve poderão ser-me úteis dentro em breve, repleto que está de referências a desfiladeiros, escarpas, socalcos, fragas, promontórios, enseadas, penhascos, falésias e arribas, colinas, vales, regatos, declives. A «vontade de estar só com os [meus] pensamentos» empurra-me para uma caminhada junto à costa. Há dois anos tive companhia. Este ano irei sem guia, perdido para Sul, até onde os músculos aguentarem e a Natureza permitir. Mas antes há que ir a Sagres comprar ostras. Amanhã temos visitas ao jantar.

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