sábado, 29 de agosto de 2009

UM LAMENTO




Desci até Sagres atraído pelo desejo das ostras. Acabei traído pelo bandido a quem as tinha encomendado. Ninguém me manda confiar. Há anos que vamos ali abastecer a despensa de peixe fresco, comprávamos conquilhas quando as havia, aprendemos o prazer afrodisíaco dos moluscos. Havia, digamos, uma relação estabelecida. Já não há. Ao lado da peixaria, o que foi outrora um bar com livros, ligação internética, boa música, um ecrã gigante onde eram projectados filmes, está transformado numa loja dos chineses. Ora toma lá o «esmeril do progresso» na sua máxima decadência. Com futuros assim, não admira que a simpatia se vá desfigurando em assaloiada soberba. Meti-me em marcha até ao Cabo de São Vicente, retemperei as forças com um bolinho de figo e amêndoa, fumei um cigarro, deixei a ventania levar as mágoas. Isto é um negócio pobre - queixa-se o vendedor. Mas eu estou mais para perscrutar as escarpas com o coração, que é a melhor forma de as perscrutar. O sangue para-se-nos nas veias, as veias tropeçam umas nas outras, o coração palpita e não esmorece. Somos infinitamente ínfimos. E belos. E feios. Somos uma felicidade a ser gozada pelo despropósito das musas (grande tirada!). Novamente em Aljezur, levanto as órbitas até às ruínas do castelo e relembro um poema revoltado que ali escrevi há um ano. Essa revolta acabou, deu lugar a um estranho comprazimento, agora sou como um caracol transportado pela sua própria casa. Afinal, «as dores são um sonho mau de que se acorda na sepultura» (Camilo Castelo Branco). Compro carapaus para as visitas, o Courrier para mim. Levo gelo para as feridas. Não me posso esquecer de mandar o episódio da semana d’A Cidade a Tossir para O Indesmentível, é a única obrigação que me liga de momento ao mundo dos obrigados (também me obrigo a olhar pela liamba, como uma criança que olha pelo seu animal de estimação). Explico à Matilde o significado da expressão temer por alguém. Enquanto descemos à Carreagem o verbo adquire um sentido fantasioso, temer por alguém não é ter medo de, nem sequer ter medo por, é querer o bem de, é dar tudo por tudo para evitar que o mal se abata sobre as cabeças de quem amamos. Larga-me a braguilha, diz a Ana. E diz muito bem. Regressemos ao lume, as visitas estão para chegar. Há carapaus assados na brasa, salada de tomate colhido na horta, pimentos assados, batatas cozidas, há vinho branco gelado, pão do Rogil, há bolinhos de amêndoa para acompanhar o café, há melão, melancia, uvas tintas e brancas. A conversa é agradável, passa depressa e é quase como se não tivesse passado nem presente nem futuro. Digamos que ajuda a iludir a maresia, o gelo que já anuncia o Outono, a partida, o regresso. Os petizes vêem filmes, pintam-se, inventam-se. A Beatriz quer fazer festas ao Basquiat. Acaba a fazer um poema quando eu a desaconselho de se aproximar do “mutante “: Mas eu tenho festinhas na minha mão. É um lamento, como quase sempre são os melhores poemas. Poemas também são mãos carregadas de festinhas para distribuir pelo mundo. E são murros, e são simplesmente mãos. Adormeço no sofá com a televisão ligada. Acordo como se não tivesse adormecido. Batem à porta, é o Vivaldo com um saco de amendoins.

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