Abrir o peito, agarrar os pensamentos e colocá-los nas mãos do outro.
Das figuras de proa do romantismo alemão, raramente é citado o nome de Heinrich von Kleist (n. 1777 – m. 1811). Citam-se frequentemente Goethe (n. 1749 – m. 1832), Schiller (n. 1759 – m. 1805) ou mesmo Novalis (n. 1772 – m. 1801), entre outros. Autor de uma obra que se destacou no terreno da dramaturgia, Kleist é antes recordado por aspectos biográficos que pouco informam acerca da sua importância enquanto autor. Refiro-me, nomeadamente, ao episódio que marcou o termo da sua curta vida: um pacto de suicídio com a amante Henriette Vogel, levado a cabo numa estalagem do lago Wannsee, perto de Berlim. Deixou-nos poemas, contos, dramas e um conjunto bastante diversificado de textos, dos quais podemos agora reter uma amostra na selecção traduzida e apresentada por José Miranda Justo.
Sobre o Teatro de Marionetas e Outros Escritos (Antígona, Junho de 2009) reúne textos provenientes, na sua maioria, da participação de Heinrich von Kleist no jornal diário Berliner Abendbläter. Há ainda duas fábulas inicialmente publicadas na revista Phöbus, da qual se publicaram 12 números co-dirigidos por Kleist e Adam Heinrich Müller (n. 1779 – m. 1829), restando três ensaios nunca concluídos, incidindo sobre temas éticos numa perspectiva algo clássica, dirigidos a um amigo e a Wilhelmine von Zenge (noiva de Kleist durante dois anos). Interessam-me sobretudo os textos da última fase, aquela que corresponde à actividade de Kleist enquanto responsável pela redacção do jornal supracitado. São textos geralmente breves que nos dão conta de um espírito inquieto e irónico, preocupado com as temáticas filosóficas do seu tempo e empenhado na denúncia dos seus vícios: «Faz com que me penetre completamente, da cabeça aos pés, o sentimento da miséria em que esta nossa era se arrasta, e com que me seja dado inteligir todas as fraquezas, imperfeições, falsidades e hipocrisias das quais decorre essa miséria» (p. 90).
Há no discurso de quem assim escreve uma vontade de agir que transcende o pântano das meras ideias. A citação, retirada de uma provável «declaração de princípios», dá-nos conta de um romantismo inconformado, mesmo quando o tópico alude a uma filosofia da beleza projectada pelo ideal romântico. A subjectividade do artista vem superar o princípio mimético da arte, os românticos da Sturm und Drang insistem na valorização do lado emocional, a “intuição do artista” é sublinhada mas nunca se opõe totalmente à racionalidade. «Ser arrastado só pela emoção é sentimentalidade, não é arte», dirá Ernst Cassirer. O que afasta Kleist dos seus contemporâneos é talvez uma perspectiva divergente sobre a Natureza, ou, dito de outra forma, um optimismo mais vacilante que leva o autor a situar os seus valores estéticos «no domínio do grotesco e de formas com ele aparentáveis» (p. 28).
Está em causa o problema da beleza, já não apenas a tempestade que conferiu à expressão a mesma dignidade da harmonia imitativa. O retrato sai especialmente subversivo no texto intitulado Novíssimo plano educativo: «Para o egoísmo, a mediocridade, o menosprezo em face de tudo o que é grande e sublime, e vários outros defeitos que podem ser aprendidos em sociedade ou simplesmente na rua, não será necessário contratar professores. / No que toca à falta de asseio e de ordem, à mania da briga e da querela, bem como à maledicência, o ensino será ministrado pela minha mulher. / A devassidão, o jogo, a bebida, a preguiça e a gula ficar-me-ão reservados» (p. 114). Voltamos a sentir a mesma perversão no texto que oferece o título ao presente volume.
A revolução coperniciana que permitiu novas teorias sobre o conhecimento, unindo a diversidade dos dados da experiência aos dados da razão, adquire em Kleist uma singular e paradoxal dimensão estética: o belo provém da espontaneidade com que o instinto e a razão interagem no sentido da supressão das leis, «à medida que a reflexão se torna mais obscura e mais fraca, a graciosidade se apresenta cada vez mais radiosa e soberana» (p. 143). Fazer desaparecer «língua, ritmo, harmonia sonora, etc.», deverá ser, pois então, o intento da arte. Eis uma porta aberta a todas as vanguardas que marcarão os séculos subsequentes. Hoje em dia isto dirá pouco aos apaniguados de uma Realidade coxa, que é sempre aquela que nós julgamos ser toda a Realidade sem nos darmos conta de que mais do que experimentarmos os outros nós somos experimentados. Um pouco como acontece com as marionetas.
Escrito para o Rascunho.
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