Aqui estamos, patético Hans, debaixo de três mil ínfimos anos transformados em tudo quanto podemos almejar. Mas protejamos o nosso «coração com três couraças críticas» (p. 463). Nem tudo são conversas espirituais, as sanefas das janelas deverão permanecer contidas, a aquilégia que por todo o lado brota pode provocar reacções alérgicas. Descemos à planície com a certeza de em breve virmos a retomar a vida no sanatório. O clima da montanha entope-nos o pulmão. Estamos condenados ao pulmão entupido. Até lá, cumpra-se a vida. Sem stresses. Mestre Vivaldo apareceu pela manhã a desafiar-me para os percebes. Por aqui escrevem perceves nas ementas. Infelizmente, tive que negar-me. Havia prometido às miúdas pizza na Taska da Saska, Odeceixe. Demos com as portas cerradas, invertemos a marcha, estancámos no Quintal dos Sabores. Local simpático, manjares atraentes, as miúdas à-vontade nos escorregas, muitas moscas. Pedi uma feijoada de búzios, metamorfoseada em feijoada de chocos por ser demasiado demorada a cozedura das trombetas marítimas. Reguei o pitéu com uma garrafa de Tinoco, colheita de 2007. A Ana investiu nas amêijoas. Rematei a refeição com um café, cheio, como sempre, e uma fatia avantajada de Delícia do Algarve, uma magnífica espécie de tarte à base de amêndoas e de figo, guarnecida com canela. Ora aí está um prazer, que até aos meus mais aplicados detractores sugiro com benevolência. Barriguinhas aconchegadas, breve passeio pelo centro. Sem Ventil no Mercado, nem trocos no Alisuper – quer-me parecer que os supermercados do toldo verde estão a dar as últimas −, libertei-me da nota numa caixa de incenso que entretanto já perfuma a mansão. Odeceixe tem vindo a perder o encanto que tinha quando aqui chegámos pela primeira vez, há treze anos. Muita coisa mudou, e essa mudança, que noutros casos fica latente, patenteia-se nos estilos, nas formas e nas cores, nos trajes, nos comportamentos e nos sotaques da maioria dos actuais forasteiros. Pode ser preconceito meu, admito. Mas também pode não ser. Há treze anos, recordo-o agora, montámos tenda no quintal de uma casa que tinha sido alugada pelo Pedro e pela Carmen. Ainda lá está, no topo da vila (?). Tínhamos a visita assídua de um cão que baptizámos com o nome de Artur. Fumámos muito, bebemos mais, fizemos amor no terraço da casa, debaixo de três mil ínfimos anos transformados em tudo quanto podemos almejar. Também me recordo de um chuveiro antigo armado no pinhal, um daqueles baldes com torneira, onde libertávamos o corpo do sal que trazíamos da praia. Agora somos outros, o tempo mudou e mudou-nos. Mantêm-se intactas, como uma espécie de elo entre o presente e o passado, algumas carismáticas figuras. Volto a avistar na praça central o velho da boina preta que desenhei há treze anos. Não está sentado no banco onde estava quando o rabisquei num pequeno caderno preto, mas continua por aqui, vivo, com a mesma boina e o mesmo perfil de doninha. A nostalgia impeliu-me para o volante. Regressei à Praia da Amália. A paisagem mantém-se encantadora, com várias estufas onde agora se cultivam framboesas e algo que me pareceu ser – seria? – folha de tabaco. O girassol metálico que nos aponta a praia também se mantém de pé, ao contrário dos pinheiros que por ali havia. Mas o regresso foi bem mais aconchegante do que a última visita. Da última vez que tinha descido à Amália, fiquei indignado com a quantidade de porcaria dispersa pelo percurso pedonal. Resquícios das hordas festivaleiras, que por ali andaram a dar cabo de tudo quanto era belo: a fonte invadida por pensos higiénicos, latas de cerveja, sacos de plástico, um cheiro insuportável a mijo e a merda… A vegetação adensou-se, camuflou a nascente, o carreiro está coberto de plantas, cria-nos a ilusão de estarmos a atravessar uma floresta densa e enigmática. Já com os pés no areal, levámos os corpos à queda de água doce, aquecemo-nos deitados nas rochas, fomos beijar as ondas com vagar e cuidadinho. Estava saciada a nostalgia. Ao chegarmos a casa, tínhamos um saco de percebes pendurado na porta com um manuscrito do Vivaldo: Senhor Henreque, esta aqui a sua prenda desculpe ser pequena mas pede ser que para a prexema seja milhor Adeus até Logo Vivaldo. Este vai directamente para a carteira, há-de acompanhar-me durante muitos anos. A vida é mais ou menos isto, jovem Castorp.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
A VIDA
Aqui estamos, patético Hans, debaixo de três mil ínfimos anos transformados em tudo quanto podemos almejar. Mas protejamos o nosso «coração com três couraças críticas» (p. 463). Nem tudo são conversas espirituais, as sanefas das janelas deverão permanecer contidas, a aquilégia que por todo o lado brota pode provocar reacções alérgicas. Descemos à planície com a certeza de em breve virmos a retomar a vida no sanatório. O clima da montanha entope-nos o pulmão. Estamos condenados ao pulmão entupido. Até lá, cumpra-se a vida. Sem stresses. Mestre Vivaldo apareceu pela manhã a desafiar-me para os percebes. Por aqui escrevem perceves nas ementas. Infelizmente, tive que negar-me. Havia prometido às miúdas pizza na Taska da Saska, Odeceixe. Demos com as portas cerradas, invertemos a marcha, estancámos no Quintal dos Sabores. Local simpático, manjares atraentes, as miúdas à-vontade nos escorregas, muitas moscas. Pedi uma feijoada de búzios, metamorfoseada em feijoada de chocos por ser demasiado demorada a cozedura das trombetas marítimas. Reguei o pitéu com uma garrafa de Tinoco, colheita de 2007. A Ana investiu nas amêijoas. Rematei a refeição com um café, cheio, como sempre, e uma fatia avantajada de Delícia do Algarve, uma magnífica espécie de tarte à base de amêndoas e de figo, guarnecida com canela. Ora aí está um prazer, que até aos meus mais aplicados detractores sugiro com benevolência. Barriguinhas aconchegadas, breve passeio pelo centro. Sem Ventil no Mercado, nem trocos no Alisuper – quer-me parecer que os supermercados do toldo verde estão a dar as últimas −, libertei-me da nota numa caixa de incenso que entretanto já perfuma a mansão. Odeceixe tem vindo a perder o encanto que tinha quando aqui chegámos pela primeira vez, há treze anos. Muita coisa mudou, e essa mudança, que noutros casos fica latente, patenteia-se nos estilos, nas formas e nas cores, nos trajes, nos comportamentos e nos sotaques da maioria dos actuais forasteiros. Pode ser preconceito meu, admito. Mas também pode não ser. Há treze anos, recordo-o agora, montámos tenda no quintal de uma casa que tinha sido alugada pelo Pedro e pela Carmen. Ainda lá está, no topo da vila (?). Tínhamos a visita assídua de um cão que baptizámos com o nome de Artur. Fumámos muito, bebemos mais, fizemos amor no terraço da casa, debaixo de três mil ínfimos anos transformados em tudo quanto podemos almejar. Também me recordo de um chuveiro antigo armado no pinhal, um daqueles baldes com torneira, onde libertávamos o corpo do sal que trazíamos da praia. Agora somos outros, o tempo mudou e mudou-nos. Mantêm-se intactas, como uma espécie de elo entre o presente e o passado, algumas carismáticas figuras. Volto a avistar na praça central o velho da boina preta que desenhei há treze anos. Não está sentado no banco onde estava quando o rabisquei num pequeno caderno preto, mas continua por aqui, vivo, com a mesma boina e o mesmo perfil de doninha. A nostalgia impeliu-me para o volante. Regressei à Praia da Amália. A paisagem mantém-se encantadora, com várias estufas onde agora se cultivam framboesas e algo que me pareceu ser – seria? – folha de tabaco. O girassol metálico que nos aponta a praia também se mantém de pé, ao contrário dos pinheiros que por ali havia. Mas o regresso foi bem mais aconchegante do que a última visita. Da última vez que tinha descido à Amália, fiquei indignado com a quantidade de porcaria dispersa pelo percurso pedonal. Resquícios das hordas festivaleiras, que por ali andaram a dar cabo de tudo quanto era belo: a fonte invadida por pensos higiénicos, latas de cerveja, sacos de plástico, um cheiro insuportável a mijo e a merda… A vegetação adensou-se, camuflou a nascente, o carreiro está coberto de plantas, cria-nos a ilusão de estarmos a atravessar uma floresta densa e enigmática. Já com os pés no areal, levámos os corpos à queda de água doce, aquecemo-nos deitados nas rochas, fomos beijar as ondas com vagar e cuidadinho. Estava saciada a nostalgia. Ao chegarmos a casa, tínhamos um saco de percebes pendurado na porta com um manuscrito do Vivaldo: Senhor Henreque, esta aqui a sua prenda desculpe ser pequena mas pede ser que para a prexema seja milhor Adeus até Logo Vivaldo. Este vai directamente para a carteira, há-de acompanhar-me durante muitos anos. A vida é mais ou menos isto, jovem Castorp.
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2 comentários:
Bela Vida....
Abraço e bjs
É bom «sentir-te»
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