quarta-feira, 23 de setembro de 2009

ALÇAPÃO

Há tempos fiquei a saber que o primeiro livro de Manuel Cintra (n. 1956) foi publicado na Colecção Forma, da Editorial Presença, após sugestão de Ruy Belo. Soube-o porque o próprio o afirmou, num gesto espontâneo de homenagem ao poeta de O Problema da Habitação, durante a cerimónia de entrega do Prémio Nacional Poeta Ruy Belo. Do Lado de Dentro (1981) marcou o início de um percurso literário – Manuel Cintra também tem estado ligado à representação teatral – com o qual nos voltámos a cruzar em folhetos editados pelo autor, dos quais é exemplo Tangerina (1990), ou em livros de recepção díspar, de que Não Sei Nunca por Onde (2004) é talvez o exemplo mais flagrante. Reaparece agora esta voz do vento, com um conjunto de poemas em prosa intitulado de Alçapão (&etc., Maio de 2009). Antes de mais, importa salientar a inclinação para o poema em prosa que vem marcando a poesia de Manuel Cintra desde o início. Os seus melhores poemas são textos onde a escrita se liberta de artimanhas formais e de subterfúgios que tantas vezes procuram disfarçar um prosaísmo mais que evidente. De resto, há na poesia actual uma tendência algo snob para disfarçar o indisfarçável. Uma imensa maioria dos poemas que por aí se lêem só merece a designação de poemas porque quem os escreveu resolveu partir em verso as pequenas histórias que saltaram para a página. Caso contrário, seriam estórias ou aforismos. Em Alçapão ninguém se arrisca a comer gato por lebre, o petit poème en prose, de raiz baudelairiana, dá corpo à voz nada ficando a dever à poesia.

Desengane-se igualmente quem espere destes poemas narrativas lineares, pautadas por situações mais ou menos dramáticas, onde personagens diversas representem a tragédia humana com mais ou menos humor, com mais ou menos melancolia, com mais ou menos erosão. O que se propõe neste livro não é uma escrita de leitura fácil, o que se propõe é uma caça à convencionalidade discursiva, uma permanente armadilha da lógica dicotómica que nos rege os dias. O primeiro texto, intitulado Nada, introduz-nos numa espécie de patologia íntima que logo passará a subverter a realidade, por vezes através de caóticas associações de imagens, outras vezes apelando a um erotismo algo decadente, que se mistura com uma sensação de crise e de doença, ou ainda apelando a fábulas de teor abjeccionista para melhor transgredir as regras que sufocam a realidade: «Olha, o escaravelho. Adora merda. Procria em merda. Transporta merda. É orgulhoso da merda que transporta. Eu também. Terei entrado na fase escaravelho, ou é apenas uma questão de idade?» (p. 5) A única regra parece ser a de resistir à normalidade testemunhando os absurdos do mundo, afirmando a loucura e o delírio como condições que explicam uma constante inversão do real, desnudando-o para melhor revelar a sua índole contraditória. Mas esta tentativa de minar a realidade não escapa a um certo fastio nos primeiros textos, os quais se distinguem dos últimos por neles estar mais em evidência o sujeito poético. Perpassam impressões de solidão, abandono, vazio: «O nada reproduz-se, ocupa, vegeta, resiste, alastra e instala-se» (p. 19).

Direi que os melhores momentos de Alçapão foram guardados para o fim, onde as deambulações por Utrecht, Barcelona, Londres, uma Lisboa nocturna de muitos conhecida – veja-se o poema D’arta −, confrontam a ausência do outro com o mundo que resta a quem fica: «O telefone tocava e eras tu, e eu chorava como se tivesse o pacífico inteiro nos olhos. E sorria e chorava, e quanto mais notícias me davas e mais loucuras me dizias mais eu sorria e mais eu chorava. Abracei-te de longe, abracei-te com estes dois braços que ainda hás-de fazer crescer. Porque tu és como o adubo dos cometas. Passas, e deixas no teu rasto um brilho que quase ninguém vê. Dizem que sim, e aproveitam-se, mas não percebem nada. Nunca perceberam nada. Chegam, vandalizam e partem» (p. 37). E segue-se um programa crítico, por vezes corrosivo, já de lágrimas secas, revolta e forças retemperadas, que tanto pode ter por objecto os modos informáticos de viver como o estado geral de um mundo virado do avesso. No poema Noticiário inventariam-se notícias, não importa se ficcionadas, que dão um aspecto geral do estado caótico do mundo. E quase a terminar, o poema Verme declara a voluntariedade da excepção, isto é, a determinação em não pertencer a esse mundo senão por consequência da condição de se estar vivo. Mas também se pode estar vivo optando por caminhar à margem, exausto, «batendo punhetas à dor», escrevendo sobre isso. Alçapão prova-o.

Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

paulo da ponte disse...

Também tenho um exemplar do folheto "Tangerina", que o autor amavelmente me deu nesse dia ... guardo-o cuidadosamente na cesta da fruta.

Anónimo disse...

http://omelhoramigo.blogspot.com/2009/09/brutinhos.html