terça-feira, 1 de setembro de 2009

BANDA SONORA


Por vezes esmoreço. É esta coisa absurda de começar a contar os minutos, de enterrar os pés na areia enquanto uma onda vem e vai, os olhos postos no horizonte, num barquito que o atravessa, nas gaivotas que adejam a sombra de um céu ligeiramente nublado, enquanto na esplanada bebo a última imperial daquela vista, passando pelo corpo, como se o corpo fosse uma tela, os negativos que nos trazem de volta os ausentes. A memória não ressuscita os mortos, alivia-nos como se por intermediações mediúnicas fosse possível voltar a estar com quem já se esteve. De certa forma, estamos sempre com quem já estivemos. Penso nisto enquanto olho a Ana deitada na praia, a Beatriz ao lado amansando o sono, a Matilde a compor inspiradas instalações contemporâneas com baldes, ancinhos, formas, pás, regadores, chinelos. São as últimas brasas de um lume petiscado há duas semanas. Já me despedi dos 286 degraus de Vale dos Homens, dos discos rochosos da Carreagem, da casa do mocho, que ali permanece e nos saúda enquanto passamos levantando poeira. Despeço-me agora da Arrifana, onde é costume o vento pousar quando nós nos preparamos para levantar voo. Antes ainda, porém, passo por Odeceixe. Espreito o Sporting num monitor estrategicamente pendurado na esplanada, bebo mais uma para a despedida, fumo alguns cigarros enquanto as pizzas são amassadas. Serão o último banquete servido na mansão. E são boas, picantes, adornadas com malaguetas e pickles que resmungam pelo fim da cachaça. Não há-de ficar nada que se beba… já que não nos livramos de um carro atolado com melancias, abóboras, amendoins, três dúzias de ovos, couves, tomates, pimentos, batatas, et voilà, cinco litros da pomada do Rogil. Enquanto despejamos a garrafa sob céu sarapintado, um foguetório de estrelas a perder de vista, dançamos lentamente ao som de grilos, cigarras, pardais, rolas, o coaxar tímido de um sapo, o mugido das vacas ao longe. Este ano não trouxe a guitarra, apeteceu-me guardar os dedos para outros dedilhados. Trouxe Haley Bonar, Rosie Thomas, Laura Veirs, Mojave 3, Red House Painters, Bonnie Prince Billy, Cat Power, Andrew Bird, Brendan Benson, Ryan Adams, Damien Jurado, Tom Waits, Jeff Hanson, Neko Case, entre outros que seria injusto mencionar. Também não foram imprescindíveis, convenhamos. À noite, dêem-me uma ópera de insectos. Ao dia, as gargalhadas das crianças. Regressemos então ao sanatório. À nossa espera, numa taverna improvisada em sótão caótico, Leopold Bloom discute «o turismo viageiro moderno» e pergunta a um marinheiro manhoso se ele já viu o Rochedo de Gibraltar, ao que este responde estar «cansado de todos esses rochedos do mar»; o Cônsul Geoffrey Firmin cai para dentro de um vulcão de mescal ao som de Bach; Ismael recorda as aventuras passadas a bordo do Pequod, e todos o escutam com iniludível interesse; especialmente Julien Sorel, que ali veio rir, já depois de morto, sobre as feridas hipócritas dos amores impossíveis. E Hans Castorp? Que é feito do filho traquinas da vida? Partiu para a guerra, enquanto nós regressamos ao sanatório, a nossa guerra de contas para pagar com horas a menos que os dias. Neste sótão onde escrevo as últimas linhas de umas férias caminhando para o abismo, recordo a casa colonica de Bruce Chatwin, esse «andarilho compulsivo», e sigo caminho, sem peregrinar, como se entrasse novamente num deserto que mais do que me consolar me impõe a consciência de um limite: o regresso a casa é o limite, a necessidade de um abrigo para o riso, a taverna improvisada onde me vou cruzando com personagens de outras vidas para melhor poder pensar a minha própria vida, porque nenhuma experiência experienciada nos abandonará definitivamente, inscrita que fica nos genes, na pele, nas rugas, no sangue. «Voltar para é também regressar de» (Michel Onfray). Regresso, então, das palavras do Fallorca com um sublinhado: «Porque também gosto de regressar a casa, à nossa casa, de reencontrar essa segurança e tranquilidade, que nada impede ou contradiz a necessidade de errância, na medida em que a considero um prazer, e nunca a aceitaria como uma devoção, um compromisso, e muito menos um fado» (Entre Chipiona e Tarifa). Dito de outro modo: considero o regresso um prazer porque sei existir nele, in crescendo, uma vontade de voltar. Mas por vezes emoreço. Que as aves migratórias, talvez um certo pombo-correio, entendam esta forma de solidão é tanto quanto me basta. Tenho uma na manga: zonas autónomas temporárias, terrorismo poético. «Agora é viver ou morrer!» Finis Operis.

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