domingo, 30 de agosto de 2009

YOU'RE THE ONE THAT I'VE BEEN WAITING FOR




Com dois bilhetes para o carrossel na carteira, oferta da Alice e do Pedro à Matilde e à Beatriz, resolvemos tirar o dia para uma investidura cultural por terras de Lagos. Comemoram-se 250 anos sobre aquela que ficou para a história como a “Batalha de Lagos”, um episódio da Guerra dos Sete Anos, que opunha a França à Grã-Bretanha, entre outros implicados, na disputa pelo «controle comercial e marítimo das colónias além-mar». O apontamento histórico cai que nem ginjas nestes dias em que procurei desintoxicar a Matilde dos efeitos narcóticos das Winx com uma BD sobre a história de Portugal. Expliquei-lhe, em jeito de intróito, que Aljezur fora noutros tempos terra das arábias, um dos últimos redutos do Gharb al-Andalus. Ontem, depois de uma abordagem às Invasões Francesas, ela mostrava-se espantada com a valentia dos seus antepassados, capazes de desancar em árabes, espanhóis e franceses, conquistando terras que, para o bem e para o mal, são as que nos foram outorgadas. São as mesmas terras onde franceses, espanhóis, ingleses e alemães vêm agora emborrachar-se, avermelhar a pele, mostrar as mamas com vestidos de noite absolutamente pindéricos e desapropriados (a moda das t-shirts com legendas provocatórias e convidativas deu lugar a decotes absolutamente óbvios e, em muitos casos, tão competentes com um certo espantalho que servia de pouso a vários estorninhos numa horta do Rogil). Também se vêem árabes, fazem comércio de peles e tatuagens de Henna. E mulheres “das Áfricas”, enrolando tranças nas cabeleiras vaidosas das turistas. Há ainda os indianos, distribuídos por vários restaurantes que deixam uma cosmopolita fragrância a caril nas ruas da cidade. Na BD que vou lendo à Matilde, os versos de Luís de Camões aparecem truncados. O povo vil é rico e prosperado, o caril uma ardente especiaria de cheiro suave. Entramos no antigo edifício dos Paços do Concelho, onde passamos vistoria a parte de um evento intitulado MALA – Mostra de Artistas de Lagos. Tanta abstracção confunde as crianças. A páginas tantas, a Matilde olha para o quadro da electricidade e pergunta o que aquilo quer dizer. Nada, provavelmente como muitas das obras ali expostas. Forma, forma e mais forma, o conteúdo reduzido a estilo, um estilo cativo de mordaças niilistas que tudo metamorfoseiam em pose. Mas nem tudo é nada, sejamos justos. Gosto de alguns trabalhos que denotam uma vontade de intervir e de denunciar, que alertam para as consequências nefastas de um progresso tão opulento quão criminoso. Fotografias de animais esborrachados por símbolos de marcas de automóveis transformados em balas fatídicas, certeiras. «Pessoalmente, não sei mesmo o que é belo, mas sei do que gosto, e acho isso amplamente suficiente» (Boris Vian). E gosto destes crimes em trânsito, destes poemas. A ironia faz milagres, como as Winx e os heróis da História de Portugal. Subimos até ao Centro Cultural de Lagos, onde vamos encontrar trabalhos de Julião Sarmento, João Louro, entre outros, como um tal de Paulo Nazolino (vide 5entidos – Agenda de Eventos de Lagos). O espaço do CCL é muito agradável, a mostra, intitulada Entre o Céu e o Mar, é breve mas pertinente, está bem organizada, deixa-nos respirar e provoca-nos sensações diversas. Agrada-me o trabalho de Paulo Brighenti (pormenor ao alto), uma espécie de mural em carvão vegetal onde se combinam vários elementos. O desenho invertido na parede toma o seu sentido quando olhamos o espelho colocado no chão. Às vezes é o que basta, olhar o mundo do avesso para melhor o compreendermos. Nada de fusões, que apenas geram confusões. Nada de oposições, que apenas demarcam fronteiras artificiais. Optemos pela Simpatia, «a alma a passar sem atavios, a passar a pé, não sendo mais do que ela própria» (D. H. Lawrence). Descemos à Praça do Infante, onde deparamos com os poderes mágicos de uma lamparina. Apelamos ao génio da lâmpada: duas doses de ostras ao natural e uma de conquilhas. Desejos satisfeitos. Na verdade, momentos antes tinha-me ajoelhado no interior da Igrejas de Santa Maria, solicitando à boa vontade do omnipresente e omnipotente bom Deus um belo prato de ostras ao natural. E o Senhor ouviu as minhas preces. De novo na Praça Gil Eanes, depois de atravessarmos a “feira dos cafés e dos restaurantes”, entramos no carrossel dos artistas de rua. Várias tribos ali se reúnem, vendendo o que sabem e o que têm em troco de uma forma de sobrevivência provavelmente inspirada na cultura ‘hippie’ dos idos sessentas e setentas. Momentos antes, tinha lido no Courrier o retrato de Milo Kurtis, um músico polaco, hippie e anarquista, que esteve quase a candidatar-se às eleições europeias. Não resisto a algumas comparações. As “fatiotas multicoloridas” de outrora deram lugar a trapos velhos geralmente negros, os “pendentes com símbolos pacifistas e cruzes” foram substituídos por tatuagens com motivos tribais e piercings de todos os tipos, duvido que alguém ainda ouça Joan Baez. Mantêm-se as baforadas de haxixe como elo de ligação a um passado não tão desaparecido quanto às vezes possa parecer. E um certo estar. Compro um CD a um trio de “dance music orgânica” (didgeridoo, bateria e multipercussões) chamado Olive Tree Dance, a Ana e a Matilde entretêm-se com os malabaristas, ofereço dois cigarros a uns punks que tocam numa flauta uma melodia que me parece ser a Oliveirinha da Serra e fazem bolas de sabão, a Beatriz quer regressar ao carrossel. Talvez um dia venha a perceber que nunca o abandonou. Mais que um circo, a vida é este carrossel de partir e de voltar para de novo partir até novamente regressar para definitivamente partir quando a morte nos leva para esse algures insondável e imprevisível. São voltas e voltas… Existir não como um palhaço que entretém o público anónimo com malabarismos imbecis, mas como alguém que dá mais uma volta no carrossel da vida, que ganha balanço, que se diverte sem outra intenção que não seja divertir-se, mesmo que por vezes a diversão seja acometida pela tristeza e à tristeza se imponha o direito e o dever de nomear o que corre no sangue - a revolta, o medo, a solidão, o ódio, o amor, o amoródio - porque mais que tudo escrever é um acto livre e a poesia a «antimatéria da sociedade de consumo». Sem heróis pelo caminho, sem fadas, sem poderes mágicos, sem Winx.

2 comentários:

Nuno Dempster disse...

Um dos factos que sempre recordo, quando me lembro de Lagos, é a descrição de Zurara da chegada dos primeiros escravos de África a Portugal. juntos depois num descampado de Lagos (Crónica dos Feitos da Guiné). Se não estivesse submerso em betão e asfalto, esse descampado deveria ser considerado de interesse nacional. Conta Zurara que os habitantes de Lagos até choravam com o apartar de famílias à força e ao calha, ao ouvirem os gritos de mães, pais, irmãos, filhos.

Constanza Muirin disse...

Paul Nazolino é o autor da fotografia do poeta Al Berto a lembrar o pintor Caravaggio (que aparece na capa do livro deste autor, O Medo, pela Assírio&Alvim).
O seu blog é das formas de diários mais interessantes que tenho lido.
Boa continuação!