Ontem aconteceu-me uma coisa muito especial. Estava sentado no café, a fingir que lia o Alçapão, quando, na verdade, perscrutava de esguelha o proeminente decote da moçoila do lado, e sentaram-se à minha frente Cesare Pavese e Marina Tsvetáeva (porque também lhe chamam Tsvietaieva e não queremos confundir os leitores, daqui em diante tratá-la-emos por Marina, uma informalidade que a própria não levará a mal). Marina apresentava-se com uma corda enrolada ao pescoço, um adereço estranho para quem julgue não serem cachecóis as cordas dos enforcados. É verdade que o tempo ainda não está para cachecóis, mas todos sabemos como são os poetas. Pediram um prato de batatas e meteram-se à conversa. Quando o empregado assentou o prato na mesa, Pavese disse: «Quem come batatas, peida-se». Marina sorriu. Entre batatas, começaram os poetas por discutir o tema do amor. Para Pavese, em cada 100, 99 mulheres eram putas. Marina não discordava, embora o facto não a inquietasse. O seu temperamento fogoso não se compadecia com discordâncias estéreis. Na realidade, ser puta era uma qualidade, uma virtude, que qualquer ser humano deveria cultivar. Puta num certo sentido, claro. Não no sentido raivoso e, de certo modo, primário que Pavese atribuía à palavra. O problema de Pavese era nunca ter conseguido rir do par de cornos que nem chegou a ter, rir imoderamente, daquele modo que ele considerava ser sinal de fraqueza. O italiano padecia de um romantismo exacerbado, ouvia demasiada Ópera, para ele tudo era uma tragédia. Daí a solidão, o sofrimento, o sentir-se constantemente traído. «Não é o amor que faz um homem chorar por aquela que o traiu, mas o sentimento aviltante de não lhe ter merecido a confiança». ─ defendia-se, enquanto Marina levava a mão à testa e ajeitava a franja. Pavese não conseguia apaixonar-se gratuitamente, julgava um luxo amar sem reservas mentais. No fundo, faltavam-lhe colhões para a felicidade hedonista, para os bens do corpo, para as paixões da carne. Era uma clara vítima de Roma. É sempre mais fácil deixar a dor crescer dentro do corpo, entregar os nervos à tristeza, deixar-se possuir pelo demónio. Mas o poeta contestava: «Segui sempre impulsos sentimentais, hedonistas. A este respeito, não há dúvidas. Mesmo a minha misoginia era uma atitude voluptuosa; não queria chatices e comprazia-me na “pose”». Marina preferia avançar de olhos fechados. Estava possessa de poesia, a vagabunda. Não queria saber de aduladores de salão. Tinha casado com o tempo, esse tempo que passava interminavelmente por nós e tudo parecia arrastar. O seu único casamento era, pois, com o tempo, não propriamente com o seu tempo, mas com o tempo em geral. Porque todos os casamentos do poeta com o seu tempo estavam condenados ao fracasso. Marina disse: «No melhor dos casos ─ bonne mine à mauvais jeu, e no pior ─ o mais frequente e mais real ─ uma infidelidade atrás de outra e sempre com o mesmo amante ─ o único que tem uma grande quantidade de nomes». O tempo confundia-se com o amor no discurso da poeta, porque Marina só sabia falar como poeta, não havia, para ela, um ser mulher, senão um ser poeta. O problema de Pavese era pensar demasiado como homem e muito pouco como poeta. Ora, enquanto Pavese argumentava que «a falsidade da poesia é que nela os acontecimentos decorrem num tempo diferente do real», Marina sublinhava que «todos os poetas de todos os tempos dizem sempre o mesmo». Marina parecia defender a eternidade da poesia, ou pelo menos parecia acreditar na imortalidade da palavra. O poeta era um sonâmbulo: «Ah, não, o sonâmbulo ninguém engana! Ele conhece o amigo e o inimigo, conhece a porta e o abismo para lá da porta ─ e a tudo isso: ao amigo, ao inimigo, à porta, ao abismo ─ está condenado». Mas para Pavese a poesia nascia de toda a vida histórica, a poesia ensinara-o a dominar-se, e, embora não soubesse se era um poeta ou um sentimental, para ele um grande poeta era como um grande amante, pois fazer poesia era como fazer amor: «Não bastam as veleidades, as fúrias e os sonhos; é preciso melhor: ter colhões». Marina, a quem a natureza havia apetrechado de ovários em vez de colhões, preferia hierarquizar os poetas. Um bom poeta era um poeta talentoso, o grande precisava, além de talento, de personalidade, o elevado era sublime, divino, um intermediário de Deus na Terra. Esta tentação da hierarquia repetia-se quando o assunto era a crítica. E rematava: «O crítico: um leitor absoluto com a caneta na mão». Pavese torcia o nariz a estas veleidades, preferindo uma comparação: «Todo o crítico é como uma mulher na idade crítica: invejoso e refoulé». Ao ouvir tal comparação, Marina não pôde deixar de soltar uma grande gargalhada. E como a conversa ia longa, Pavese encerrou o assunto: «Foder bem e comer melhor; agrada a todos». Nisto pareciam estar de acordo. Pagaram as batatas, levantaram-se e partiram. Ela com uma corda atada ao pescoço, ele com um saco de barbitúricos na mão. Eu fiquei mais algum tempo no café a pensar no que acabara de presenciar. Pedi uma cerveja e continuei a fingir que lia o Alçapão.
1 comentário:
A situação descrita na segunda frase do texto é um absurdo completo: não faz sentido chamar decote proeminente àquilo nem chamar moçoila a Pedro Mexia, pois era ele quem estava ao seu lado e até tossiu indiscretamente quando os outros dois chegaram.
Por outro lado, andar a ler (ou a fingir que lê, que seja) um livro da autoria de um familiar duma figura mítica do empresariado e do dirigismo desportivo como Sousa Cintra só abona a seu favor.
Bem-haja.
Enviar um comentário