sexta-feira, 4 de setembro de 2009

UMA CAMISA LIMPA


A 4 de Setembro de 1896 ocorreu em Marselha um fenómeno do Entroncamento: nasceu Antonin Artaud. Corria sangue grego na família, mas não era grande coisa: escaparam três de nove filhos. Aos 4 anos, Artaud foi atingido pela meningite, um vírus que certo bom senso científico considerou estar na origem das nevroses que o acompanharam ao longo da vida. Na adolescência voltou a ser atingido, mas pela faca de um proxeneta. Inconformados com um filho sonâmbulo, os pais arrumaram-no num sanatório. Aí teve por companhias literárias Rimbaud, Baudelaire, Edgar Poe. Tudo bons rapazes. Em 1920, um médico receita-lhe 40 gotas de láudano ao pequeno-almoço, o princípio de uma dieta à base de opiáceos que Artaud fez questão de experimentar várias vezes ao longo da vida. Deixa Marselha e parte para Paris, quando o eco Dadá fazia escutar-se em qualquer esquina vanguardista. André Breton afirma: «Dadá é o livre pensamento artístico». Mas Breton pouco sabia de liberdade. Rompe com Dadá e engendra o primeiro manifesto do surrealismo. Entretanto, Artaud tentava publicar poemas em revistas que o rejeitavam. Envia alguns para a Nouvelle Revue Française, que Jacques Rivière recusa. No entanto, Artaud inicia uma profícua troca de correspondência com Rivière. Publica Tric Trac du Ciel, posteriormente renegado. No mesmo ano em que adere ao surrealismo, aparece L’Ombilic des Limbes. Artaud dedica-se ao cinema e ao teatro, é actor, encenador, funda o teatro Alfred Jarry, escreve argumentos para filmes. Em 1926, acaba por ser expulso do movimento surrealista. A la Grand Nuit ou le Bluff Surréaliste consagra a ruptura com a orientação do movimento. Desenvolve uma forte inclinação para a performance teatral, aprofunda as suas teorias acerca do teatro da crueldade, profere palestras, redige manifestos. A 6 de Abril de 1933, «propôs-se ao público com um título estranho: O Teatro e a Peste. (…) Anaïs Nin estava lá (….): «não há palavras para descrever o que Artaud interpretava no estrado da Sorbonne. (…) Tinha o rosto em convulsões de agonia e os cabelos ensopados em suor. Os olhos dilatavam-se, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a flexibilidade. Transmitia-nos a secura e o ardor da sua garganta, o sofrimento, a febre, o fogo das suas entranhas. Estava em plena tortura. Berrava. Delirava. Representava a sua própria morte, a sua própria crucificação. As pessoas começaram por ficar de respiração cortada. Depois desataram a rir. Toda a gente ria! Assobiava, por fim, as pessoas foram saindo uma a uma, no meio de um grande ruído, a falar alto, a protestar». Ao lado de Artaud estava a actriz Génica Athanasiou, vítima de uma relação tumultuosa, da qual restaram várias cartas, com o autor de Heliogabalo. O fracasso arrasta Artaud até ao México, onde trava conhecimento com os índios Tarahumaras. Dirige-se à Irlanda para restituir aos irlandeses uma vara que, dizia ele, pertencera a S. Patrício, mas também a Lúcifer e a Jesus Cristo. Expulsam-no do país. No regresso a França, é detido e recambiado para um asilo. Estávamos em 1937. Atravessa um período de exílio de nove anos, transportado de asilo para asilo até estancar em Rodez, à custa de electrochoques e outras suaves terapias. São tempos marcados, sobretudo, pela sobrevivência. Escreve cartas para não se esquecer de que estava vivo. Os seus poemas-carta são célebres, nomeadamente a carta a Pierre Loeb, intitulada O Homem-Árvore, escrita em 1947: «Quem foi Baudelaire? / Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval? / Corpos / que comeram, / digeriram, / dormiram, / ressonaram uma vez por noite, / cagaram / entre 25 e 30 000 vezes, / em face de 30 ou 40 000 refeições, / 40 mil sonos, / 40 mil roncos, / 40 mil bocas acres e azedas ao despertar, / tem cada qual de apresentar 50 poemas, / o que realmente não é de mais, / e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática está muito longe de ser mantido, / está todo ele desfeito, / mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto. / Nós somos 50 poemas, / o resto não somos nós mas o nada que nos veste, / se ri para começar de nós, / vive de nós a seguir». É recuperado de Rodez pela mão de alguns amigos, que o homenageiam no Teatro Sarah Bernhardt. Estávamos em 1946, a Segunda Grande Guerra havia terminado e Artaud regressava do seu campo de concentração. Publica algumas obras fundamentais, realiza gravações de rádio cuja transmissão era cancelada, tenta publicar as suas obras completas. Este homem que um dia representou o papel do judeu errante, foi ele próprio, em carne e osso, a errância incarnada. Encontraram-no morto, no dia 4 de Março de 1948, sentado numa cadeira, depois de haver ingerido um frasco quase cheio de hidrato de cloral. Havia uma nota no espelho do quarto: vestir amanhã uma camisa limpa para o encontro com o Pierre Loeb.

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