sábado, 31 de outubro de 2009

2666


Quase a terminar 2666, mais concretamente na p. 967, os revisores que trabalham na editora do Sr. Jacob Bubis, divertem-se a falar de um livro intitulado Museu de Horrores, onde um caçador de gralhas chamado Mas Sengen recolheu um vasto conjunto de lapsus calami copiados de grandes obras da literatura mundial. Não sabemos se Roberto Bolaño (n. 1953 – m. 2003) pretendia figurar nesse museu, mas é o que parece quando lemos isto: «Esta era uma desconhecida, mas, coisa curiosa, ninguém soube dizer como se chamava. (…) Algumas pessoas, não muitas, sabiam que se chamava Isabel, mas quase todo a gente [sic] a conhecia como a Vaca» (p. 480). É possível que exista aqui mais uma dose dessa auto-ironia que paira sobre todo o romance, mas a verdade é que a primeira edição portuguesa de 2666 (Quetzal, Setembro de 2009) apresenta vários problemas de tradução e é uma calamidade no que se refere à revisão. O festival que acompanhou o lançamento e a promoção do livro, seguido de entusiasmos mais ou menos compreensíveis, não pode fazer calar a falta de cuidado patente nesta primeira versão portuguesa de um romance a todos os títulos invulgar.

Não me alongarei nos exemplos, que são uma “catrafada” (sic, p. 421) deles, mas não posso deixar de referir inúmeros e irritantes obstáculos nos quais vamos tropeçando ao longo das 1025 páginas do romance − «não para o mar nem para a para a praia a transbordar» (p. 100), «eu viu a testa de hidroterapia do cólon» (p. 500), «No México Lotte ficou ainda permaneceu mais um bocado com o telefone colado à orelha» (p. 1022), etc., etc., etc. −; a cidade de Phoenix transformada em Poenix (p. 626); frases com uma pontuação e uma construção bastante duvidosas; uma carta atribuída a Rosa, na p. 203, que, na realidade, foi escrita por Lola, mãe de Rosa; um uso, “quanto muito” (sic, p. 214), bastante discutível dos advérbios aonde e onde; uma Michele Sánchez Castillo que, na página seguinte, passa a chamar-se Michel Sánchez para, na página seguinte, voltar a ser Michele e, 5 linhas depois, transformar-se novamente em Michel (pp. 642-645); referências a um escritor russo que tanto se chama Tosltoi (pp. 815 e 829) como Tolstoi; assim como referências a um livro intitulado Considerações sobre a Morte de Evguenia Bosh, suposto pseudónimo da dirigente bolchevique Evguenia Gotlibovna, que, em boa verdade, se chamava Bosch e não Bosh… A extensão de 2666 não pode servir de desculpa. Temos lido romances igualmente extensos onde não se verifica a mesma profusão de gralhas.

A excepcionalidade da obra-prima de Bolaño merecia, pois, uma tradução igualmente excepcional, uma tradução que não enfermasse do mal que parece ser regra entre as traduções portuguesas. A leitura só não sai de todo prejudicada por mérito exclusivo do autor. 2666, publicado postumamente cerca de um ano após o desaparecimento do escritor chileno, foi dividido em cinco partes, as quais correspondem a cinco romances que deveriam ter sido publicados separadamente por razões meramente económicas. Que tenham sido publicados em conjunto é uma decisão mais que acertada, pois as ligações entre as cinco partes não só acabam por ser facilmente inteligíveis como tornam explícita a mestria de Bolaño na arquitectura deste monumento. As comparações com o Ulisses de Joyce são descabidas. Ulisses é uma complexa teia de géneros literários, repleta de artifícios que nos mergulham numa aventura pelo inconsciente, ao passo que 2666 chega a ser cinematográfico. De resto, são várias e nada ingénuas as referências cinematográficas que aparecem ao longo das cinco partes que compõem o romance. A ter de haver alguma comparação, ela deve ser feita com a capacidade de reinventar a organização espácio-temporal de uma narrativa que reconhecemos, por exemplo, num William Faulkner (aludido na p. 943).

Deste modo, podemos afirmar que toda a narrativa de 2666 conflui para um tempo (final do séc. XX, início do séc. XXI) e para um espaço (cidade de Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA), embora esses tempo e espaço sejam apenas o ponto de referência para uma deriva histórica e transfronteiriça que nos transporta entre a Alemanha de 1920 e o mundo actual. Esta viagem é feita através do percurso de vida de Hans Reiter, um jovem que se converteu num escritor obscuro chamado Benno von Archimboldi. Se repararmos bem, é von Archimboldi quem ecoa do princípio ao fim do romance, embora as cinco partes se vão ligando através de correlações entre outras personagens. Se na primeira parte – A Parte dos Críticos – está em evidência a relação entre três catedráticos e uma professora de literatura alemã especializados na obra de Benno von Archimboldi, não deixa de ser verdade que é em Santa Teresa que a primeira parte se resolve e é lá que vamos encontrar, pela primeira vez, o melancólico professor de filosofia que estará em evidência na segunda parte – A Parte de Almafitano. Por sua vez, é nesta parte que nos cruzamos primeiramente, de forma ainda algo incipiente, com Rosa Almafitano, uma das personagens centrais da terceira parte – A Parte de Fate −, por quem o jornalista afro-americano Oscar Fate se apaixona. Na terceira parte somos introduzidos de forma mais clara num tema que percorre todo o romance, os estranhos assassínios de mais de 200 mulheres em Santa Teresa, tema esse que estará em evidência na quarta parte – A Parte dos Crimes. Nesta parte conheceremos Klaus Haas, o principal suspeito no caso dos assassínios, um alemão com ligações ao escritor Benno von Archimboldi que estará em evidência na última parte de 2666A Parte da Archimboldi.

A construção circular de 2666 lembra-nos um tornado, um fenómeno que arrastará durante 1025 páginas todo um historial humano cujo retrato final é impiedoso e obriga-nos a recolocar a questão da natureza humana: quem somos nós, neste início de um novo milénio, entre os destroços de um edifício arruinado pela nossa própria incúria? Bolaño mostra-se implacável quando narra a violência que nos persegue desde sempre, dos sacrifícios astecas à Segunda Guerra Mundial, das perseguições a intelectuais na ex-URSS aos crimes insolúveis de Santa Teresa, das lutas travadas pelos afro-americanos aos crimes e ao racismo exibidos sem critério e impunemente nos media actuais, da bisbilhotice e da intriga entre intelectuais ao jornalismo sensacionalista, da promiscuidade entre poderes e criminosos à prostituição de altas e baixas esferas, dos snuff movies à… Enfim, um retrato violentíssimo do mundo que chega a ser fastidioso n’A Parte dos Crimes, com a descrição de dezenas de assassínios de mulheres, quando não hilariante nos detalhes cruéis que impelem o leitor para um abismo de desolação, desamparo, desencanto, desesperança que, ao fim e ao cabo, é o abismo da loucura.

Em todas as partes que compõem 2666 vislumbramos esse abismo da loucura motivado pela violência, por vezes de forma muito subliminar nos sonhos/pesadelos que as diversas personagens vão revelando, outras vezes, de um modo muito claro, na presença frequente da figura do manicómio. Temos Edwin Johns, o pintor que impulsionou o novo decadentismo ao pintar o auto-retrato mais radical dos últimos anos, depois de ter cortado uma das suas mãos e de a ter colado numa tela; temos o poeta homossexual que vive no manicómio de Mondragón, a fazer-nos lembrar Leopoldo María Panero; temos a Drª Elvira Campos, directora de um manicómio, e o seu inventário de fobias, ao mesmo tempo que temos a vidente Florita Almada e o seu inventário de artes divinatórias; temos todo um rol de situações que nos permitem olhar para 2666 como um espelho do mal, um deserto com muitos corpos enterrados, um cemitério onde há muito vem sendo sepultada a natureza humana, porque «a loucura é contagiosa» (p. 211), «as pessoas vêem o que querem ver e o que as pessoas querem ver nunca corresponde à realidade» (p. 258). «Os gregos inventaram, por assim dizer, o mal, viram o mal que todos tínhamos dentro de nós, mas os testemunhos ou as provas desse mal já não nos comovem, parecem-nos fúteis, ininteligíveis» (p. 310). Talvez a intenção de 2666 seja voltar a comover-nos. Talvez.


Escrito para o Rascunho.

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