Fiz uma pausa na leitura de 2666 - a penúltima parte é um fastio de crimes - para ver um filme de guerra. A verdade é que ao pé do romance de Bolaño o filme do chinês Feng Xiao Gang (nome tramado) caiu-me como uma história de embalar. Não admira, portanto, que tenha adormecido a meio, que tenha sonhado coisas maravilhosas com a Renée Zellweger, que tenha acordado ao som de balas e das falas de 2666: a vida é uma merda, a loucura é contagiosa, a vida não vale nada, a vida é uma tristeza, a vida acaba sempre em dor e sofrimento, as pessoas só vêem o que querem ver. Pelos vistos, eu não quis ver o filme chinês. Ainda assim, quando acordei, fui lavar o rosto, olhei-me ao espelho e constatei que tenho de cortar urgentemente o cabelo. Regressei ao filme neste estado pacificador de quem encontra num objectivo frívolo a substância da existência. A vida pode ser uma merda, mas de vez em quando convém arranjar o cabelo. De modo que, regresso ao filme. Quem foi o realizador que disse que um bom filme é aquele que nos adormece? Não me recordo, mas era capaz de ter razão. Também era capaz de não ter. Nunca saberemos se não voltarmos a ver o filme que nos adormeceu. E se ele voltar a adormecer-nos algo não estará bem, ou nós ou o filme. Digo eu. Não foi o caso. Na caixinha do DVD comparava-se A Honra dos Heróis ao Resgate do Soldado Ryan, o que não parecendo mau também não é necessariamente animador. Vi muita guerra no início, muitas balas, muitos corpos decepados, muito sangue, muita gritaria, muitos efeitos especiais, alguns conflitos hierárquicos, um batalhão todo a ser dizimado. No final, vi o que restou do batalhão, um capitão a revoltar-se num interrogatório porque ninguém queria reconhecer a honradez com que os seus homens se haviam batido em campo de batalha. Até aqui, o costume. A partir daqui, o costume. Lá se descobre que o capitão tinha as suas razões, que o batalhão tinha dado o peito às balas, lá aparecem, no final, as medalhas, o reconhecimento, as patranhas militares que sempre levaram alguns néscios a acreditar na existências de causas pelas quais vale a pena morrer. E subitamente volto a 2666 e ao especialista forense Emilio Garibay, um ateu com uma “biblioteca mais do que decente” mas sem tempo para leituras: «Às vezes pensava que já não lia precisamente por ser ateu. Digamos que a não leitura era o degrau mais alto do ateísmo ou pelo menos do ateísmo tal como ele o conhecia. Se não acreditas em Deus, como acreditar na porcaria de um livro?, pensava». Ora aí está um homem cujo juízo não inspira qualquer desconfiança.
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