quarta-feira, 21 de outubro de 2009

ELOGIO DO CINISMO (3)

Quando Whitehead disse em tom jocoso, durante uma conferência em Gifford, que a tradição filosófica na Europa consistia unicamente numa sucessão de notas de rodapé acrescentadas ao texto de Platão, ele não estava muito longe da verdade... Na verdade, tudo o que existe fora desta relação com o filósofo grego encontra-se esquecido, negligenciado, maltratado e crucificado. Quando não se traduz, quando não se trabalha numa edição do texto, quando se deixa o corpus disperso no estaleiro da literatura antiga, evitam-se os trabalhos universitários, as teses, as publicações, os artigos; proíbe-se, por conseguinte, o ensino e a difusão dessas ideias que, ainda assim, são consideráveis.
Com base no princípio crístico, redige-se uma história da filosofia destinada a celebrar a religião da ideia e do idealismo. Sócrates como messias imolado por incarnar a revelação filosófica inteligível, Platão como apóstolo, mesmo como um São Paulo da causa inteligível: a filosofia idealista, essa é a religião revelada da Razão ocidental. Neste sentido, estabelece-se a contagem a partir de Sócrates: antes dele, depois dele, pré-socrático, pós-socrático. A historiografia chega mesmo a manter as expressões socrático menor ou pequeno socrático para caracterizar Antístenes ─ um cínico ─ e Aristipo ─ um cirenaico ─, dois criadores de uma sensibilidade autónoma, ou outros socráticos, de acordo com a expressão, em particular Símias e Cebes, dois... pitagóricos!
A história leva a cabo um grande número de variações em torno deste tema da dominação idealista na historiografia clássica. Assim, o cristianismo, transformado em religião e em filosofia oficial, repele aquilo que incomoda a sua linhagem ─ o materialismo abderiano, o atomismo de Leucipo e de Demócrito, Epicuro e os epicuristas gregos e romanos tardios, o nominalismo cínico, o hedonismo cirenaico, o perspectivismo e o relativismo sofista ─, privilegiando o que pode fazer-se passar por propedêutico à nova religião: o dualismo, a alma imaterial, a reincarnação, a desconsideração do corpo, o ódio à vida, a predilecção pelo ideal ascético, pela salvação ou pela condenação
post mortem dos pitagóricos e dos platónicos. Tudo isto convém-lhe maravilhosamente.
(…)
Neste sentido, a historiografia esqueceu e, na melhor das hipóteses, negligenciou; deixou em silêncio, conscientemente ou não; por vezes, organizou este afastamento; de tempos a tempos, com a ajuda do preconceito, desaparece o questionamento; não se tornou habitual considerar os cínicos como filósofos; aliás, Hegel escreveu-o de uma forma clara: sobre eles não existem mais do que anedotas… Os sofistas? Até às recentes reabilitações, foram encarados sempre do ponto de vista de Platão: mercenários da filosofia para os quais a verdade não existe e a única coisa que conta é aquilo que tem resultados! Tudo contribui para evitar a confirmação da modernidade deste pensamento do relativismo, do perspectivismo, do nominalismo, em suma, do anti-platonismo!
Os agentes da historiografia tradicional transformam em realidade o incrível sonho de Platão: os factos estão presentes em Diógenes Laércio ─
Vidas, Opiniões e Sentenças dos Filósofos Ilustres (IX, 40) ─ e parece-me extraordinário que esta história nunca seja tratada filosoficamente. Platão desejava ter, com efeito, uma grande fornalha na qual lhe fosse possível lançar todos os livros de Demócrito! O considerável número de obras, o seu sucesso, a presença dos seus textos em muitos lugares, levaram dois pitagóricos ─ Amiclas e Clínias ─ a dissuadir Platão de cometer um tal delito. Um filósofo inventor do auto-de-fé moderno...
Compreende-se, portanto, que o nome de Demócrito não seja citado uma única vez na totalidade das obras de Platão! Este esquecimento tem o valor de auto-de-fé conceptual: pois a importância da obra, e sobretudo da doutrina, mais capaz de pôr em dificuldades, até mesmo em perigo, as fabulações de Platão, exigia uma explicação clara e franca, honesta, intelectual. A parcialidade anti-materialista do platonismo manifestava-se já durante a vida do filósofo: a lógica da historiografia clássica e dominante repete este tropismo. Nem pensar em atribuir uma qualquer dignidade a esta outra filosofia, razoável, racional, anti-mitológica e verificável pelo simples bom senso, aquilo de que os filósofos tantas vezes carecem...
A sucessão parecia estar escrita: Epicuro e os epicuristas, ao restaurarem o materialismo do homem de Abdera, desencadeiam os ataques de contenção por parte dos adeptos do idealismo. O que não falta são calúnias contra o filósofo do Jardim, mesmo durante a sua vida: grosseiro, luxurioso, preguiçoso, voraz, bebedor, glutão, desonesto, extravagante, malévolo, maldoso, ladrão das ideias alheias, arrogante, pretensioso, emproado, presunçoso, inculto, etc. Em suma: imundo indigno de figurar, tanto ele como os seus discípulos, no Panteão dos filósofos.
A calúnia persiste quanto à sua obra. A ataraxia que define o prazer, a saber: a ausência de perturbação alcançada por um prudente e comedido uso dos desejos naturais e necessários, torna-se volúpia trivial de um animal entregue ao seu deleite mais brutal. O atomismo que reduz o mundo a uma combinação de átomos no vazio é visto como incapacidade para dispor de uma inteligência digna deste nome. O acolhimento dos escravos, das mulheres e dos estrangeiros no Jardim vale-lhe a reputação de chamar até si as vítimas que possam satisfazer a sua sexualidade desenfreada, etc. E vinte séculos de pensamento servem-se destas calúnias, sem mudar uma vírgula.
Só na Antiguidade, a contra-história da filosofia parece ser fácil: ela reúne todos os inimigos de Platão! Ou quase todos... Leucipo, o fundador do atomismo, logo também Demócrito, depois Antístenes, Diógenes e outros cínicos, Protágoras, Antípon e o grupo de sofistas, Aristipo de Cirene e os cirenaicos, Epicuro e os seus... a elite intelectual. Mais tarde, em contraponto à ficção cristã construída a partir do personagem conceptual chamado Jesus, aos Pais da Igreja ─ preocupados em fornecer o material ideológico ao futuro cristão do Império ─ e aos escolásticos medievais, torna-se possível sair da sombra na qual se deixa apodrecer os gnósticos licenciosos ─ Carpocrates, Epifânio, Simão, Valentino... ─, seguidos pelos Irmãos e Irmãs do Espírito Livre ─ Bentivenga de Gubbio, Heilwige Bloemardine, os irmãos De Brünn e outros desequilibrados... Tantos obscuros desconhecidos, ainda assim bem mais excitantes, com o seu panteísmo teórico e as suas orgias filosóficas práticas, do que os monges do deserto, os bispos contritos e demais cenobitas de mosteiro. ..
As mesmas observações servem para a constelação do epicurismo cristão, inaugurado por Lorenzo ValIa no
Quattrocento ─ um De voluptate que nunca foi traduzido para Francês ao longo de quatro séculos, até à emenda levada a cabo por alguns amigos, alertados pela minha chamada de atenção... ─, ilustrada por Pierre Gassendi, passando por Erasmo, Montaigne e outros; pelos libertinos barrocos franceses ─ Pierre Charron, La Mothe Le Vayer, Saint-Evremond, Cyrano de Bergerac... ─; pelos materialistas franceses ─ o abade Meslier, La Mettrie, Helvétius, d'Holbach... ─; pelos utilitaristas anglo-saxónicos ─ Bentham, Stuart Mill ─; pelos Ideólogos que se debruçaram sobre a fisiologia ─ Cabanis ─; pelos transcendentalistas epicuristas ─ Emerson, Thoreau ─; pelos genealogistas desconstrutores ─ Paul Rée, Lou Salomé, Jean-Marie Guyau; pelos socialistas libertários, pelos nietzscheanos de esquerda ─ Deleuze, Foucault ─, e tantos outros discípulos da volúpia, da matéria, da carne, do corpo, da vida, da felicidade, da alegria e demais instâncias culpáveis!
Que se censura a esse mundo? Querer a felicidade na terra, aqui e agora, não depois, hipoteticamente, nouro mundo alcançável, concebido como uma fábula para crianças… A imanência: eis a inimiga, o palavrão! Os epicuristas devem a sua alcunha de imundos ao facto de serem determinados pela sua compleição fisiológica: a sua existência gera a sua essência. Ao não poderem agir de outra forma senão como
amigos da terra ─ segundo a feliz expressão do Timeu de Platão ─, esses materialistas condenam-se a escavar com o focinho, sem sequer saberem da existência de um Céu cheio de Ideias, por cima das suas cabeças. O porco ignora para sempre a verdade, pois só a transcendência leva até ela, e os epicuristas estagnam, ontologicamente, na mais total imanência. Ora, não existe mais que isso: o real, a matéria, a vida, o vivente. E o platonismo declara guerra contra tudo isto, procurando punir tudo o que celebre a pulsão de vida.
O ponto comum subjacente a esta constelação de pensadores e de pensamentos irredutíveis é uma formidável preocupação por desconstruir os mitos e as fábulas para tornar este mundo habitável e desejável. Reduzir os deuses e os temores, os medos e as angústias existenciais a encadeamentos de causalidades materiais; mitigar a ideia da morte com uma terapia activa, aqui e agora, sem convidar a morrer durante o período da vida de cada um para melhor partir quando chegue o momento; construir soluções com o mundo e com os homens realmente existentes; preferir modestas proposições filosóficas que sejam viáveis, em detrimento de construções conceptuais sublimes mas inabitáveis; recusar que se faça da dor e do sofrimento vias de acesso ao conhecimento e à redenção pessoal; procurar o prazer, a felicidade, a utilidade comum, o contrato que provoca regozijo; conciliar-se com o corpo, não propor-se detestá-lo; dominar paixões e pulsões, desejos e emoções, não extirpá-los brutalmente de nós mesmos. A aspiração ao projecto de Epicuro? O puro prazer de existir... Um projecto sempre actual.



Michel Onfray, in A Potência de Existir, trad. José Luis Pérez, Campo da Comunicação, Fevereiro de 2009, pp. 53-59.

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