domingo, 18 de outubro de 2009

ELOGIO DO CINISMO (2)




Alguns historiadores tendem a situar o surgimento da putativa escola cínica entre o processo e a morte de Sócrates, ocorridos em 399 a. C., e a morte de Antístenes (Atenas, 455-360 a. C. ou 444-365 a. C.), um dos chamados socráticos menores que havia fundado o ginásio de Cinosargos (Kynosarges), situado nos arredores de Atenas. De facto, Antístenes é geralmente referido como o filósofo iniciador de uma atitude filosófica dita cínica: ideal da autarquia (capacidade de bastar-se a si mesmo), combate às ilusões sociais, oposição às leis da cidade, renúncia à fama, um esforço permanente no domínio dos prazeres e das dores, ou seja, um certo despojamento de inspiração oriental, negação dos universais, das definições e da Ideia platónica. Hoje em dia, o cinismo é confundido com hipocrisia, com a contradição entre o dizer e o fazer, confusão essa que se deve tanto a uma intencional deturpação da mensagem cínica como à ignorância que transforma historicamente os conceitos mais pertinentes em meras palavras circunstanciais (o adjectivo cínico também costuma ser usado com os sentidos de impudente, desavergonhado, irónico). Na voz corrente, chamar cínico a alguém pode ter o mesmo sentido que dizer-se surrealista um qualquer gesto estrambólico. Ora, tivesse a boca respeito pelas palavras que profere, nem o surrealismo seria reduzido ao gesto estrambólico, nem o cinismo seria capturado pelo ardil da hipocrisia. Cinosargos é etimologicamente traduzível por cão ágil, daí que os adeptos da escola de Antístenes tenham ficado conhecidos como cínicos, ou seja, cães. Entre eles, o mais importante de todos foi Diógenes de Sínope (Sínope, ?-324 a. C.) − Diógenes, o cão −, o qual radicalizou os ensinamentos de Antístenes sobre a felicidade. Se o mestre aparece ainda arreigado à noção socrática de uma felicidade dependente do conhecimento e, por consequência, da prática virtuosa, embora recusando já toda e qualquer abstracção de tipo platónico quanto a uma hipotética universalidade dos conceitos, Diógenes liga o problema da felicidade à questão do prazer, sustentando que a felicidade só se obtém «pela satisfação dos desejos naturais, satisfação essa que se deve levar a cabo da maneira menos dispendiosa». Tanto num como no outro, estamos perante um esforço tremendo de chamar a filosofia à acção, resistindo aos remédios ideológicos que vieram a transformar a filosofia num terreno pantanoso de abstracções castradoras do humano. Daí que a questão fundamental, em Diógenes, não seja tanto o que é o homem, mas sim onde está o homem. Por isso mesmo ele percorria os caminhos de Atenas com uma lanterna acesa em pleno dia, buscando o homem que vivesse de um modo autêntico. O chamado cinismo começa por ser o contrário daquilo em que os seus detractores o transformaram, ele era uma busca irónica da autenticidade e não um logro hipócrita e contraditório. De resto, o elogio de um modo de vida deambulatório não foi senão o exemplo mais radical de que a vida feliz está em sabermos usar o que temos à mão, e não em transformarmo-nos progressivamente em escravos de um progresso que apenas serve os interesses dos poderosos, daqueles que organizam a cidade em função de leis cujo principal objectivo é o domínio sobre os outros e um controlo absoluto das pulsões naturais. Em consequência, afirma-se a inutilidade das ciências e o absurdo das construções metafísicas, substitui-se «a mediação conceitual pelo comportamento, o exemplo e a acção» (Giovanni Reale, Dario Antiseri), reivindica-se uma vida sem metas impostas pela sociedade, uma vida livre, rejeita-se o casamento, proclama-se a cidadania universal, desprezam-se os prazeres, não num sentido de abdicação do prazer ou rejeição absoluta do prazer, mas antes no sentido de afirmar a autonomia do homem perante os seus próprios prazeres. Eis uma anedota que exprime bem as intenções de Diógenes: o poderoso Alexandre chega-se ao pé do filósofo e diz-lhe que ele peça o que quiser, ao que o filósofo simplesmente responde: afasta-te do meu sol. À sombra dos homens poderosos, o filósofo prefere a luminosa liberdade solar, um modo de viver que seria impossível sem os seus excessos, sem as suas inconveniências, os quais foram sendo determinados pelas enviesadas leituras históricas das inúmeras anedotas que ficaram para a posteridade: Diógenes masturbava-se à luz do dia; durante um banquete, atiraram-lhe ossos como a um cão, mas ele, que se vangloriava do epíteto cão (cínico), andou sobre os ossos, alçou a perna e mijou caninamente; certo dia, pediu a alguém que lhe encontrasse uma casa, mas confrontado com a demora escolheu como habitação um barril que encontrou na rua… Foram estes os testemunhos que fizeram dos cínicos «os precursores de todos os movimentos que se opõem à ordem social estabelecida» (M. H. Rocha Pereira). Deixar apodrecer este legado na prateleira das obscuridades que os bem pensantes foram arrumando ao longo da história é um crime de lesa-contracultura.

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