quinta-feira, 15 de outubro de 2009

FUGITIVUS ERRANS


Numa carta a Georg Brandes, professor dinamarquês que leccionou um ciclo de conferências dedicado à filosofia de Nietzsche, descreve o próprio filósofo a sua herança: «Nasci a 15 de Outubro de 1844, no campo de batalha de Lützen. O primeiro nome que ouvi foi o de Gustaz Adolf. Os meus antepassados eram nobres polacos (Niëzky), parece que o tipo se conservou bem, apesar de três “mães” alemãs. No estrangeiro sou em geral considerado polaco; ainda este Inverno a relação de estrangeiros de Nice referenciava-me como polaco. Dizem-me que a minha cabeça aparece em quadros de Matejko (pintor polaco). A minha avó pertencia ao círculo Schiller-Goethe de Weimar; o seu irmão foi discípulo de Herder no lugar de superintendente-geral de Weimar. Tive a felicidade de ser aluno da distinta Schulpforta, da qual tantos notáveis saíram, na literatura alemã (Klopstock, Fichte, Schlegel, Ranke, etc., etc.)…» Filho de um pastor protestante, que morreu quando Friedrich Wilhelm tinha apenas 6 anos, teve como companhias familiares mais directas a mãe Franziska e uma irmã dois anos mais nova, Elisabete, a quem devemos uma distorcida edição da primeira integral das suas obras. Passa seis anos em Pforta, onde se familiariza com a cultura grega clássica, lê os modernos e escreve alguns ensaios. Estuda Teologia e Filologia em Bona e Leipzig, onde profere a sua primeira conferência. Interessa-se pelo pensamento de Demócrito. Em Outubro de 1867, oferece-se como voluntário no conflito franco-prussiano, mas cinco meses depois a sua carreira militar é interrompida na sequência de uma queda de cavalo. Conhece Wagner no ano seguinte. A casa de Wagner e de Cosima em Triebschen será praticamente o seu lar durante os próximos três anos. A 12 de Fevereiro de 1869 é chamado para a Universidade de Basileia, onde terá sido um professor empenhado, apesar da vida isolada e das péssimas relações com o professorado local. Em Abril de 1870 é nomeado professor catedrático, incorporando-se posteriormente no exército prussiano numa divisão de apoio a feridos. A experiência militar volta a sair gorada, pois o filósofo adoece com difteria. O seu estado de saúde vai piorando de ano para ano, sofre de insónias, dores de cabeça e de estômago, a vista deteriora-se. Compõe várias peças musicais e, em Janeiro de 1872, publica O Nascimento da Tragédia. Wagner vê na obra uma fundamentação filosófica da sua música, Nietzsche continua a compor peças que lhe merecem avaliações negativas, recusa o convite de uma outra Universidade e vê o seu salário ser aumentado. Conhece Malwida von Meysenbug, uma amiga íntima do casal Wagner, com quem trocará intensa correspondência. Férias pela Suíça e Norte de Itália. Queixa-se de que não tem alunos a assistir às suas aulas, apercebe-se do seu falhanço como professor, das intrigas que circulavam contra si. Com a saúde a piorar, Wagner aconselha o amigo a casar-se com uma mulher rica ou a compor uma ópera, mas Nietzsche manifesta uma opinião profundamente crítica quanto à possibilidade do casamento: «odeio de tal modo a restrição e inserção em toda a ordem “civilizada” das coisas que dificilmente qualquer mulher será suficientemente aberta para mim». Berta Rohr não o faz mudar de ideias, mas alimenta os primeiros ciúmes da irmã, a qual preferia o casamento com Natalie Herz. É por esta altura que estabelece amizade com Paul Rée, autor das Psychologischen Beobachtungen. A relação entre os dois revelar-se-á determinante, mais ainda após a edição do seu segundo livro: Humano, Demasiado Humano. O livro é rejeitado nos ciclos wagnerianos, o casal Wagner denota bastante animosidade por este trabalho que Von Seydlitz classifica de demasiado rée…al, aludindo à influência de Paul Rée. Nietzsche abandona a casa onde vivia com a irmã, em Basileia, e muda-se para os arredores da cidade. Elisabete regressa a Naumburg. É o início da separação familiar, dos cortes com amizades antigas, um recomeço que se faz acompanhar de uma saúde cada vez mais débil e de tratamentos em estâncias termais. A 2 de Maio de 1879, fundamentando-se nas enxaquecas frequentes e nos problemas com os olhos, pede a rescisão do contrato que tinha com a Universidade de Basileia. Começa o nomadismo de Nietzsche, numa constante mudança de residência, particularmente por Suíça e Itália. Relações sempre difíceis com os editores, querelas, intrigas, leituras, uma vida cada vez mais isolada, passada em pensões e quartos alugados, marcam este período. Esquece-se dos seus próprios anos em 1880. Passará apenas alguns dias felizes na companhia de Rée e de uma jovem russa que conhece em Roma, na residência de Malwida von Meysenbug. Trata-se de Lou Salomé, um espírito livre «que durante algum tempo será um dos vértices de um triângulo amoroso, com Nietzsche e Rée». São muitas as cartas trocadas entre Nietzsche e Lou, passam algumas semanas juntos em Tautenburg, o fascínio do filósofo é imenso, mas, mais uma vez, a irmã resolve intrometer-se, tornando-se inimiga de Lou, conspirando contra o relacionamento mantido entre os dois. «Sucedem-se cartas a Lou e a Rée de distanciamento e amargura. Referências ao suicídio e ao ópio». Em 1883, depois de ter publicado A Gaia Ciência, começa a escrever Assim Falava Zaratustra. Corte definitivo com Rée e sentimentos de desprezo relativamente à mãe e à irmã, lamentações dirigidas aos falsos amigos, dificuldades de edição, desprezo contra a propaganda antijudaica que então ocupava o seu editor, contínuas queixas do estado de saúde, contrastam com a megalomania manifestada nos últimos escritos. «Quando Nietzsche acabou a quarta parte do Zaratustra, escreveu ao austero cunhado, dizendo que Gast o teria alojado em casa de uma prostituta! Quanto ao alojamento, Nietzsche teria escolhido um quarto no sítio mais barulhento da cidade (Rialto), mas o bom aspecto da hospedeira (um ar asseado) foi determinante. Alguns dias mais tarde, chega ao pé de Gast e diz-lhe: “Acho que me hospedei em casa de uma prostituta”. Mas não seria uma forma de festejar o fim do Zaratustra viver em casa de uma verdadeira putana veneziana As dificuldades de publicação persegui-lo-ão até ao termo dos seus dias. Em Leipzig, paga do seu bolso a edição de Para Além do Bem e do Mal. Os últimos tempos são passados a escrever e a compor. A 19 de Setembro de 1887, envia a alguns amigos a obra musical Hymnus na das Leben, com melodia do próprio, partitura de Peter Gast e palavras de Lou Salomé. As estadas em Sils-Maria e os tempos de Turim são reconfortantes, mas nada que o abstraia do desprezo a que a sua obra tinha sido votada. Morre a 25 de Agosto de 1900.

A partir de “Nietzsche – os vinte anos fundamentais a partir das suas cartas”, de António Marques, Círculo de Leitores, Março de 1996.

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