Há demasiadas esquinas em Appaloosa, cidade onde se circula com uma sombra na perseguição. Os homens da lei chegam a contrato, quase acabam traídos pelos legítimos interesses de quem, por fim, se deixa fascinar pelos interesses ilegítimos. Muitas são as Appaloosa deste mundo. Na terra onde nasci, dizia-se, um homem pode passar a vida inteira a enganar meio mundo, a trair meio mundo, a exercer sobre os outros o medo, a tirania, mas não se safa de morrer sem coveiro que lhe abra o buraco. A questão essencial nem é de lei. Em Appaloosa, em todas as cidades com este nome, o que se torna essencial é o elemento que se intromete entre o desejo de ordem e o caos dos indivíduos. De resto, é lei da lei fazer-se reger por elementos que sempre escaparam, escapam e escaparão à maioria dos mortais. Uma viúva fogosa, por exemplo, que cai sobre o coração duro de um implacável homem da lei, como um pingo de água a cair sobre uma pedra fervente, pode expirar vapores sublimes. A cumplicidade entre o delegado e o chefe é inviolável, entre eles uma confiança cega que vem do conhecimento que possuem um do outro, foram homens que mataram e viram matar. Uma cena melhor que todas as outras: Virgil Cole diz a Everett Hitch que aquilo que os distingue não é a pontaria, não é a coragem, é apenas o facto do segundo ter sentimentos. Serão esses sentimentos o juiz final de uma execução. Everett leva o corrupto Randall Bragg a um duelo não porque deseje matá-lo na sequência de crimes impiedosos que não podem ficar impunes, mas porque não suporta vê-lo com a (puta da) viúva que veio provocar vapores no coração pedregoso de Virgil. Ou seja, Everett mata Bragg para que Virgil possa ficar com Allison French, a viúva-alegre e interesseira, boa e cheirosa cama, para que Virgil tenha sentimentos, para que nada mais os distinga. O efeito é singular: a personagem secundária acaba por ser chamada à primeira página, caber-lhe-á a moral da história. Os filmes de cowboys fazem-me acreditar nestas coisas. Além do que… nada pode abalar a amizade entre dois homens, nada pode corromper um elo com olhos no lugar dos nós, olhos que vêem o que outros julgam dissimulado. No fundo, Allison French era uma puta como outra qualquer, com uma vulgar predilecção pelos garanhões da manada. Não mereceria tantos esforços não fosse o caso de, em Appaloosa, as hipóteses do amor estarem reduzidas a um mínimo fixado pela argúcia dos corações pedregosos.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
UM ESTRANHO ELEMENTO
Há demasiadas esquinas em Appaloosa, cidade onde se circula com uma sombra na perseguição. Os homens da lei chegam a contrato, quase acabam traídos pelos legítimos interesses de quem, por fim, se deixa fascinar pelos interesses ilegítimos. Muitas são as Appaloosa deste mundo. Na terra onde nasci, dizia-se, um homem pode passar a vida inteira a enganar meio mundo, a trair meio mundo, a exercer sobre os outros o medo, a tirania, mas não se safa de morrer sem coveiro que lhe abra o buraco. A questão essencial nem é de lei. Em Appaloosa, em todas as cidades com este nome, o que se torna essencial é o elemento que se intromete entre o desejo de ordem e o caos dos indivíduos. De resto, é lei da lei fazer-se reger por elementos que sempre escaparam, escapam e escaparão à maioria dos mortais. Uma viúva fogosa, por exemplo, que cai sobre o coração duro de um implacável homem da lei, como um pingo de água a cair sobre uma pedra fervente, pode expirar vapores sublimes. A cumplicidade entre o delegado e o chefe é inviolável, entre eles uma confiança cega que vem do conhecimento que possuem um do outro, foram homens que mataram e viram matar. Uma cena melhor que todas as outras: Virgil Cole diz a Everett Hitch que aquilo que os distingue não é a pontaria, não é a coragem, é apenas o facto do segundo ter sentimentos. Serão esses sentimentos o juiz final de uma execução. Everett leva o corrupto Randall Bragg a um duelo não porque deseje matá-lo na sequência de crimes impiedosos que não podem ficar impunes, mas porque não suporta vê-lo com a (puta da) viúva que veio provocar vapores no coração pedregoso de Virgil. Ou seja, Everett mata Bragg para que Virgil possa ficar com Allison French, a viúva-alegre e interesseira, boa e cheirosa cama, para que Virgil tenha sentimentos, para que nada mais os distinga. O efeito é singular: a personagem secundária acaba por ser chamada à primeira página, caber-lhe-á a moral da história. Os filmes de cowboys fazem-me acreditar nestas coisas. Além do que… nada pode abalar a amizade entre dois homens, nada pode corromper um elo com olhos no lugar dos nós, olhos que vêem o que outros julgam dissimulado. No fundo, Allison French era uma puta como outra qualquer, com uma vulgar predilecção pelos garanhões da manada. Não mereceria tantos esforços não fosse o caso de, em Appaloosa, as hipóteses do amor estarem reduzidas a um mínimo fixado pela argúcia dos corações pedregosos.
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