quinta-feira, 5 de novembro de 2009

NÁUFRAGOS DO DESERTO




Recordo com bastante agrado dois filmes de Walter Salles: Central do Brasil e Diários de Che Guevara. Também vi Dark Water, mas desse recordo pouco mais do que um bom elenco num prédio decrépito e entre muita chuva. Nunca vi Terra Estrangeira (imagem ao alto), embora seja claro que depois de ter visto Linha de Passe o apetite pede para ser saciado com carácter de urgência. Linha de Passe é mais um excelente momento do cineasta brasileiro. Uma família, mãe grávida e seus quatro filhos, pai ausente, em estado bruto de sobrevivência na periferia de São Paulo. O futebol está no centro das atenções, assim como a religião. De resto, há vários momentos em que a fé dos evangélicos parece confundir-se com a fé das claques. O futebol como religião? Não necessariamente. Diria antes o futebol como último reduto da fé, um tubo de escape, esse encontro da vontade de Deus (fé) com a vontade dos homens (necessidade). E se é para a necessidade que todos parecem ser impelidos, não deixa de ser pela fé que todos parecem ser salvos. Ninguém sabe se o penálti deu golo, ninguém sabe se o milagre aconteceu, nem é preciso sabê-lo. A vida é quase sempre uma bola à trave, o segredo está em não fazer do falhanço uma fatalidade. As assimetrias sociais ficam evidentes, o modo como a criminalidade se aproxima daqueles que precisam também, assim como a luta diária, constante, árdua e desesperante de quem possui pouco mais que nada. Resta, pois, a esperança. Quando nada mais resta, pode restar ainda a esperança. É essa esperança que cresce na barriga da mãe abandonada. Tudo isto parece algo lamechas a quem pode passar a vida a queixar-se de barriga cheia, ou seja, sem substância. Mas procuremos calçar os sapatos de quem vive no limite da loucura, de quem está prestes a cair no abismo, de quem traz a miséria pela sombra. Futebol e fé? Que outros milagres podem salvar os náufragos do deserto? O amor?

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