Tarefas bestificantes são todas aquelas que cumprimos por obrigação, como burros de carga, cães de fila ou galinhas poedeiras. A Miranda, por exemplo, trabalhava no McDonald’s, provavelmente o sonho de muitos dos chineses que dão à costa nos mares da Califórnia. O pai fora contrabaixista num quinteto de jazz, era agora caçador de tesouros perdidos algures no séc. XVIII. Também não é fácil ser contrabaixista de jazz, é um instrumento muito pesado, custa a carregar, pode deixar a coluna torta. Ainda assim, entre um balcão do MCDonald’s e um clube de jazz eu não hesitaria na escolha. Já entre dar à costa dos mares da Califórnia, como Deus me pôs no mundo, nu e miserável, ou caçar tesouros, venha o Diabo e escolha. Há tempos pediram-me 4000 caracteres sobre a caça aos tesouros no mundo moderno. Andei às voltas com o tema, ensaiei vários textos, não vi como pôr cabeça tronco e membros no testemunho. Basicamente, teria de dizer que a caça aos tesouros é a mais bestificante das tarefas neste trabalho de estar vivo. Trabalhar cansa, mesmo se for a escrever poemas. Todo o trabalho é uma violação do direito ao sono, ao descanso, do direito ao ócio, à cultivação biológica do neurónio. Há muito que a preguiça foi promovida a pecado. Não merecia. A preguiça é preguiçosa, não faz mal a ninguém, tal como o vício que só é castigo do próprio vício, a preguiça só é castigo da preguiça. Digamos que gosto de trabalhar, que se pudesse passava a vida a trabalhar mais do que devo para me ficarem a dever mais do que já devem, digamos que gosto de fazer horas extraordinárias, de pensar que o mundo é uma linha recta sem feriados nem fins-de-semana, que os domingos foram uma invenção do Diabo, a justificação da preguiça. Digamos que gosto de tocar baixo os meus instrumentos, não sonho com reinados, nem na Califórnia nem na Fuzeta. Cada um faz o que pode, muitos fazem o que não podem, a quase nada somos obrigados. As excepções apenas servem para confirmar a regra. A minha história é simples: desde o primeiro salário, em 1997, que sinto a precariedade como um testemunho eloquente da vida precária. Comecei como professor estagiário de Filosofia numa secundária do Alto da Damaia. Foram bons tempos. Pouquíssimas horas de buliço, muito tempo livre, subsídio de férias e de Natal, o pilim a cair a tempo e horas, um luxo efémero. Passei por um jornal regional onde me pagavam 100 contos mensais por baixo da mesa, aguentei três penosos meses a jogar a anca entre um director ex-comunista e um chefe de redacção neo-fascista. Experimentei uma livraria lisboeta durante um mês em regime de part-time. Depois parti para Almeirim, onde voltei a experimentar o gozo da leccionação regular. Fui stôr de Filosofia e de Sociologia, mergulhei num buraco sem fundo que me trouxe até à costa Oeste do país. Aqui assentei arraial e por aqui me fui desenrascando, divulgando cursos de escolas privadas, vendendo explicações de Filosofia, Sociologia e Psicologia, voltando a passar por um jornal - desta feita nacional, onde me pagavam todas as semanas 25 contos por baixo da mesa -, enveredando pela formação. Entre 2000 e 2008, trabalhei sempre para a mesma instituição. Fui formador de Mundo Actual, Desenvolvimento Pessoal e Social, Biblioteca, Português, em cursos de nível III e nível IV, fui professor de Filosofia e de Psicologia, cumpri horários, assinei dezenas de contratos, marquei presença em inúmeras reuniões que não eram pagas, cheguei a dar apoio escolar pro bono, sempre a recibos verdes e com o pescoço atado à insegurança que os filhos da puta dos recibos têm para oferecer. Os horários eram alterados todas as semanas, em função de disponibilidades e disposições alheias, nunca soube o que eram subsídios de alimentação, de férias, de Natal, mas senti sempre o carinho das obrigações fiscais, do IVA à Segurança Social (SS) era um amor. Andei a investir para a reforma, que é como quem diz andei a investir para o haraquiri. Pelo menos era o que acontecia quando havia trabalho, pois é claro que o verde da esperança não garante os milagres. Quem viveu da formação profissional antes de ela ter sido praticamente toda açambarcada pelas garras do Estado sabe como era: com sorte, se conseguíssemos acumular várias turmas, recebíamos dez meses ao ano. Aproveitava-se tudo com um único critério: ser pago. Entretanto o mar pôs-se bravo, naufraguei no inferno do quase-desemprego, desci aos infernos do telemarketing durante 6 meses, cumpri os objectivos com distinção, fui parar a uma livraria empurrado pelo gosto e pela necessidade. Trabalha-se muito, ganha-se mal, mas cheiram-se os livros. E esse é, só esse, o meu tesouro do séc. XVIII. Talvez um dia volte a pegar no contrabaixo. Às vezes chateiam-me para que o faça. Mas eu não vivo na Califórnia, e nasci em Portugal, no seio de uma família que por herança tem apenas o penhor da burguesia. As minhas filhas ainda são pequenas para entenderem a história, mas o recado tem sido transmitido com persistência e a dose de loucura que o mundo permite: desde que não se hipotequem a elas próprias, vivam. Isto se quiserem sentir que estão vivas, ou seja, que existem.
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
TESOURO PERDIDO
Tarefas bestificantes são todas aquelas que cumprimos por obrigação, como burros de carga, cães de fila ou galinhas poedeiras. A Miranda, por exemplo, trabalhava no McDonald’s, provavelmente o sonho de muitos dos chineses que dão à costa nos mares da Califórnia. O pai fora contrabaixista num quinteto de jazz, era agora caçador de tesouros perdidos algures no séc. XVIII. Também não é fácil ser contrabaixista de jazz, é um instrumento muito pesado, custa a carregar, pode deixar a coluna torta. Ainda assim, entre um balcão do MCDonald’s e um clube de jazz eu não hesitaria na escolha. Já entre dar à costa dos mares da Califórnia, como Deus me pôs no mundo, nu e miserável, ou caçar tesouros, venha o Diabo e escolha. Há tempos pediram-me 4000 caracteres sobre a caça aos tesouros no mundo moderno. Andei às voltas com o tema, ensaiei vários textos, não vi como pôr cabeça tronco e membros no testemunho. Basicamente, teria de dizer que a caça aos tesouros é a mais bestificante das tarefas neste trabalho de estar vivo. Trabalhar cansa, mesmo se for a escrever poemas. Todo o trabalho é uma violação do direito ao sono, ao descanso, do direito ao ócio, à cultivação biológica do neurónio. Há muito que a preguiça foi promovida a pecado. Não merecia. A preguiça é preguiçosa, não faz mal a ninguém, tal como o vício que só é castigo do próprio vício, a preguiça só é castigo da preguiça. Digamos que gosto de trabalhar, que se pudesse passava a vida a trabalhar mais do que devo para me ficarem a dever mais do que já devem, digamos que gosto de fazer horas extraordinárias, de pensar que o mundo é uma linha recta sem feriados nem fins-de-semana, que os domingos foram uma invenção do Diabo, a justificação da preguiça. Digamos que gosto de tocar baixo os meus instrumentos, não sonho com reinados, nem na Califórnia nem na Fuzeta. Cada um faz o que pode, muitos fazem o que não podem, a quase nada somos obrigados. As excepções apenas servem para confirmar a regra. A minha história é simples: desde o primeiro salário, em 1997, que sinto a precariedade como um testemunho eloquente da vida precária. Comecei como professor estagiário de Filosofia numa secundária do Alto da Damaia. Foram bons tempos. Pouquíssimas horas de buliço, muito tempo livre, subsídio de férias e de Natal, o pilim a cair a tempo e horas, um luxo efémero. Passei por um jornal regional onde me pagavam 100 contos mensais por baixo da mesa, aguentei três penosos meses a jogar a anca entre um director ex-comunista e um chefe de redacção neo-fascista. Experimentei uma livraria lisboeta durante um mês em regime de part-time. Depois parti para Almeirim, onde voltei a experimentar o gozo da leccionação regular. Fui stôr de Filosofia e de Sociologia, mergulhei num buraco sem fundo que me trouxe até à costa Oeste do país. Aqui assentei arraial e por aqui me fui desenrascando, divulgando cursos de escolas privadas, vendendo explicações de Filosofia, Sociologia e Psicologia, voltando a passar por um jornal - desta feita nacional, onde me pagavam todas as semanas 25 contos por baixo da mesa -, enveredando pela formação. Entre 2000 e 2008, trabalhei sempre para a mesma instituição. Fui formador de Mundo Actual, Desenvolvimento Pessoal e Social, Biblioteca, Português, em cursos de nível III e nível IV, fui professor de Filosofia e de Psicologia, cumpri horários, assinei dezenas de contratos, marquei presença em inúmeras reuniões que não eram pagas, cheguei a dar apoio escolar pro bono, sempre a recibos verdes e com o pescoço atado à insegurança que os filhos da puta dos recibos têm para oferecer. Os horários eram alterados todas as semanas, em função de disponibilidades e disposições alheias, nunca soube o que eram subsídios de alimentação, de férias, de Natal, mas senti sempre o carinho das obrigações fiscais, do IVA à Segurança Social (SS) era um amor. Andei a investir para a reforma, que é como quem diz andei a investir para o haraquiri. Pelo menos era o que acontecia quando havia trabalho, pois é claro que o verde da esperança não garante os milagres. Quem viveu da formação profissional antes de ela ter sido praticamente toda açambarcada pelas garras do Estado sabe como era: com sorte, se conseguíssemos acumular várias turmas, recebíamos dez meses ao ano. Aproveitava-se tudo com um único critério: ser pago. Entretanto o mar pôs-se bravo, naufraguei no inferno do quase-desemprego, desci aos infernos do telemarketing durante 6 meses, cumpri os objectivos com distinção, fui parar a uma livraria empurrado pelo gosto e pela necessidade. Trabalha-se muito, ganha-se mal, mas cheiram-se os livros. E esse é, só esse, o meu tesouro do séc. XVIII. Talvez um dia volte a pegar no contrabaixo. Às vezes chateiam-me para que o faça. Mas eu não vivo na Califórnia, e nasci em Portugal, no seio de uma família que por herança tem apenas o penhor da burguesia. As minhas filhas ainda são pequenas para entenderem a história, mas o recado tem sido transmitido com persistência e a dose de loucura que o mundo permite: desde que não se hipotequem a elas próprias, vivam. Isto se quiserem sentir que estão vivas, ou seja, que existem.
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4 comentários:
Se pegares no contrabaixo, volto a polir o trompete...
Excelente. Mas também deprimente: eu nem sequer sei tocar um instrumento musical.
Tinha a ilusão de que com a minha saída o trabalho diminui-se progressivamente...
Paulo, vamos nessa.
JAA, deprimente é o Sporting a jogar à bola. :)
Anabela, estás a perder o circo do Natal. Até aposto que vais morrer de inveja. :))))
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