quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O CASO


Danil Ivánovitch Iuvatchov (ou Daniil Ivanovich Yuvachov ou Даниил Иванович Ювачёв), mais conhecido por Daniil Harms (ou Kharms) nasceu em São Petersburgo no ano de 1905, presumivelmente a 30 de Dezembro, mas também a 17 do mesmo mês, se nos quisermos guiar por outros calendários. Filho de Ivan Iuvatchov, figura proeminente do grupo revolucionário Vontade do Povo, contactou, desde muito cedo, com gestos subversivos e suas consequentes retaliações. Sob o jugo de Alexandre III, o pai foi preso, condenado a trabalhos forçados perpétuos, condenação posteriormente substituída por quinze anos de reclusão. Morreu em 1940, cumprindo um percurso de escritor de histórias fantásticas a filósofo religioso e pacifista. Daniil teve o privilégio de estudar numa escola de inspiração germânica, onde adoptou o pseudónimo Kharms, embora variando entre DanDan, Khorms, Charms, Shardam, Kharms-Shardam, etc. Em 1924 foi estudar para Leninegrado, onde iniciou a sua vida literária junto de um grupo experimentalista que praticava a «poesia zaum» (linguagem poética sem significado definido). Rapidamente abandonou o grupo e aderiu à associação «tchinari» (experimentação em ritmos), mas só em 1927, com a formação do colectivo vanguardista OBERIU (Associação de Arte Real), é que a sua actividade ultrapassou o domínio da animação e atingiu o nível da publicação. «Poesia não é papas de painço que se engolem sem mastigar para se esquecerem logo a seguir», defendiam os OBERIU, ao mesmo tempo que apontavam a mira contra a escola zaum. No manifesto dos OBERIU, Daniil Harms era apresentado como um «poeta e dramaturgo que não concentra a atenção numa figura estática mas sim na colisão de uma série de objectos, nas suas inter-relações». Ainda antes da aventura OBERIU, Daniil havia casado com Ester Aleksandrovna Rusakova, de quem acabou por se divorciar em 1932, para se casar novamente, em 1934, com Marina Vladimirovna Malich. Em 1926 conseguira publicar dois poemas para adultos, os únicos publicados em vida, em antologias organizadas pela All-Russian Union of Poets. As performances absurdas, a linguagem excêntrica, os textos ilógicos, a postura dandy, granjearam-lhe a reputação de louco. Acabou por ser preso, pela primeira vez, em 1931, e condenado a deportação para a cidade de Kursk. De notar que a condenação esteve associada a uma acusação de escritor de literatura infantil anti-soviética, já que a actividade dos OBERIU estava fortemente ligada à publicação de histórias infantis. Regressará a Leninegrado no ano seguinte, iniciando um período de privações várias e desespero. Não consegue publicar os seus textos, os planos para performances e peças dramáticas não vingam, os OBERIU desmembram-se, Daniil passa fome, escreve uma prosa absurda e desesperada que dedica, em grande parte, a Marina Vladimirovna Malich, a sua nova companheira. O futuro dos OBERIU estava condenado na Rússia revolucionária. Uns morreram de fome, outros na prisão, outros foram exilados, outros foram assassinados, outros desapareceram durante a guerra: «Very few of the founders of the group escaped jail and exile. Zabolotsky spent the years 1938 to 1946 at various labour camps in Siberia. Vaghinov died ill and penniless in 1934». Harms chegou a servir no Exército Vermelho, escreveu várias histórias infantis, mas a sua atitude vanguardista entrava em conflito com a política cultural estalinista. O experimentalismo de Harms não cabia na União dos Escritores Soviéticos. Foi proibido de publicar, acabando novamente preso no ano de 1941. Desaparece misteriosamente. «Soube-se mais tarde que Harms, correndo o risco de ser fuzilado, simulou distúrbios psíquicos e foi internado no hospital-prisão, onde morreu, talvez de fome, talvez do “tratamento”». Só em Fevereiro de 1942, Marina foi informada da morte do marido. O nome do escritor foi reabilitado em 1956 e os seus escritos infantis voltaram a ser publicados durante a década de 1960. Marina foi evacuada para as Caraíbas após a morte de Harms, regressando posteriormente à Europa para viver na Alemanha. A ler este curioso artigo, a biografia no kirjasto e A Velha e Outras Histórias, de onde respigamos o caso final:
UM CASO


Uma vez o Orlov empanturrou-se com ervilhas moídas e morreu. Krilov, quando tal soube, morreu também. Ora, o Spiridónov morreu sem mais nem menos. A mulher de Spiridónov caiu do aparador e morreu também. Os filhos de Spiridónov afogaram-se no lago. A avó de Spiridónov alcoolizou-se e meteu-se a mendigar. Mikháilov deixou de se pentear e apanhou tinha. Kruglov desenhou uma senhora de chicote e enlouqueceu. Perekhrióstov recebeu um vale postal de quatrocentos rublos e tornou-se tão arrogante que foi despedido do trabalho.
Gente boa não sabe firmar-se na vida.

Daniil Harms, in A Velha e Outras Histórias, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Assírio & Alvim, Agosto de 2007, p. 226.

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