Fotografia de Luísa Ferreira.
Comecei a ler Al Berto em 1991, tinha 16 anos. Vivia em Rio Maior, uma cidade do antigo farwest onde nem uma livraria havia. Encomendei O Medo através do Círculo de Leitores, tendo vindo a saber mais tarde ser essa «uma péssima porta de entrada na obra de Al Berto, porque sublinha o excesso (textual) da obra, para além de aglutinar, em centenas de páginas, poemas importantes e outros menoríssimos» (Pedro Mexia, Diário de Notícias, 3 de Setembro de 2004). Desconheço boas portas de entrada na obra do que quer que seja, entrei por onde entrei e fui espancado, não me queixando hoje senão das dores que me dá reconhecer nesta pessoa que transporto uma terrível inclinação para a menoridade. À Procura do Vento Num Jardim D’Agosto, primeiro livro de Al Berto coligido nessa edição de O Medo, ofereceu-me uma série de vícios, dos quais guardo, ainda hoje, um preceito moral para a vida que não pretendo eterna: «sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir. vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável, para que a morte nada encontre de mim quando vier» (p. 23). Haverá importância ou menoridade nestas asserções? Quem quiser que arrisque. Em 1996, estudava eu Filosofia na Universidade Católica de Lisboa, fui ouvir o Al Berto numa palestra aí organizada, salvo erro, pela malta da Comunicação Social. Já nessa altura me apercebi que havia uns tipos muito interessantes que sabiam distinguir a poesis da mimesis, mas fugiam esquiva e melodramaticamente da vida e suas consequentes pancadas. Talvez receassem os prazeres do corpo, talvez achassem inestética a imagem de Jesus crucificado, talvez dessem demasiados ouvidos ao paternalismo familiar. Sucede que me habituei a andar só desde muito cedo, mas agora tinha uma companhia para a solidão: os livros do Al Berto todos autografados. Havia no Jardim D’Agosto, cuja primeira versão fora retirada do mercado, a vida hipotética e modernizada do Jardim d'Epicuro. Não negarei que essa maldição sempre me fascinou, ainda hoje a cultivo nas minhas hortas literárias e da escrita não pretendo outra coisa senão a voz maldita dos transgressores - cada qual à sua maneira - que saibam oferecer pela palavra o dom da liberdade. O resto é fiado. E o meu coração não fia, sobretudo porque distingue muito bem a boa clientela da freguesia caloteira. Al Berto nasceu Alberto (Raposo Pidwell Tavares), a 11 de Janeiro de 1948, no berço de uma família da alta burguesia. O pai estudava medicina em Coimbra, mas fartou-se do curso e mudou-se para Sines, terra da família onde o poeta veio a passar toda a infância e adolescência. Aos 17 anos, foi para Lisboa frequentar a Escola António Arroio. Dois anos depois, em Abril de 1967, zarpa para Bruxelas, onde acabará por viver durante oito anos, deslocando-se esporadicamente por França, Espanha e Itália. Em Bruxelas, fundou o Montfaucon Research Center, «publicou um livro de desenhos, Projets 69; expôs na galeria Fitzroy; animou o centro cultural de Hainaut; escreveu, em francês, Esquisse pour un portrait d’Alain Petit-Pieds et Henriette Rock; viajou ao sabor do imaginário lido em Rimbaud e Genet; dirigiu episodicamente, em Vaux, uma secção infantil de artes plásticas; mandou às urtigas o curso de pintura monumental na École Nationale Supérieure d’Architecture et des Arts Visuels…» (Eduardo Pitta, in Metal Fundente, Quasi, 2004). O exílio Belga terminou em 1975. Regressou a Portugal e fixou-se em Sines, na quinta onde havia passado a infância e a adolescência. Abriu uma livraria, fundou um projecto editorial em nome próprio. António Cabrita, outro esquecido, era um dos comparsas: «[livros] ousadíssimos para a época e que eu me esforçava por distribuir, apesar da facilidade com que se incendiavam as pestanas dos livreiros quando deparavam, no miolo, com fotografias de efebos nus» (in A Phala, n.º59, 1997). Joaquim Manuel Magalhães deu eco, falando de «uma das mais interessantes propostas Editoriais fora das editoras desta década» (in Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981). A marginalidade paga-se com marginalidade. E tem muito gosto. O projecto editorial em nome próprio finda, mas Al Berto continua a publicar ora na Contexto, ora na Frenesi. Durante este período, foi também animador cultural da autarquia de Sines, tendo, mais tarde, dirigido o Centro Cultural Emmerico Nunes. Mudou-se para Lisboa em 1987, ano da primeira edição de O Medo, "o tijolo", vendo reconhecida a obra com a atribuição do Prémio PEN Clube de Poesia de 1988. Ao contrário do que se julga, O Medo não é uma reunião convencional da obra publicada. A esses livros se junta um conjunto de textos inéditos, «uma espécie de diário» (Manuel de Freitas, Me, Myself and I, Assírio & Alvim, Junho de 2005), publicados em alternância com as obras vindas a lume anteriormente. 1987 foi também o ano de Sião, antologia co-organizada com Rui Baião e Paulo da Costa Domingos. Em 1988, Al Berto publicou Lunário, uma incursão pelos domínios da narrativa: «…Sabes, Nému… acho que seria sedutor se o fim do corpo se processasse doutro modo, não pelo apodrecimento, mas sim pelo regresso ao que ficou registado nos textos e nas fotografias e nas pinturas; conforme recuássemos, a escrita e as imagens desapareceriam… / …Atravessaríamos assim a nossa própria memória e apagar-nos-íamos no início dela» (Lunário, p. 121). Com o tempo, a obra de Al Berto tem vindo a afirmar-se como uma das principais influências de toda uma geração de poetas que encontraram na sua poesia ecos de uma errância que reanima o mito do poeta maldito, sendo que muito mais relevante do que o mito é a verdade da palavra enquanto encenação da vida. Nesse sentido, não deixa de ser sintomático que Manuel de Freitas se tenha estreado em livro com um ensaio dedicado à obra de Al Berto. Em A Noite dos Espelhos (Frenesi, 1998) a obra de Al Berto aparece devidamente lida e enquadrada, já sem as amarras mitológicas que tantas vezes afundam a poesia na construção da imagem do autor registada pela(s) história(s). Os anos de 1990 foram de consagração literária. Publicou O Anjo Mudo, uma recolha de textos dispersos por revistas, catálogos de exposições, entre outros. Voltei a cruzar-me com o poeta ao som de Gace Jones e no espectáculo Os Filhos de Rimbaud, realizado no Coliseu dos Recreios. Diagnosticado o cancro linfático, houve ainda tempo para ir arrumando a casa com entrevistas, alguns debates e leituras de poesia. Al Berto faleceu a 13 de Junho de 1997, alguns meses depois de ter sido publicado o seu último livro de poemas:
notas para o diário
deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos.
a dor de todas as ruas vazias.
sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.
a dor de todas as ruas vazias.
mas gosto da noite e do riso das cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precariedade doutro corpo.
a dor de todas as ruas vazias.
pois bem, mário ─ o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.
a dor de todas as ruas vazias.
sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas as ruas vazias.
os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-se as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas… e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida ─ e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias.
Al Berto, in Horto de Incêndio, Assírio & Alvim, Março de 1997, pp. 39-40.
3 comentários:
é curioso. eu também estive nessa sessão com o Al Berto, na Católica. tenho tudo gravado. conversa. poemas e o resto.
um dos tipos que organizou essas sessões é o «gato» Ricardo Araújo Pereira.
saludos !!!!!
mg
Uma relíquia, portanto.
este poema. este poema que entre tantos tu escolheste. é por isso que há anos habitas a minha insónia... bj
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