domingo, 10 de janeiro de 2010

PRESSA DE VIVER





[para o Zé, que nunca lerá este poema]


Negro, trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
— e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI — que ele decerto
interpretou como um partido de 'tugas
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.

Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-lo
— «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era «pressa de vive!», garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos
às evidências, ao rosto desse
próximo
que só por bíblico acaso amamos
— quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.

Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.

Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
— e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.





Manuel de Freitas, in [SIC], Assírio & Alvim, pp. 41-42, Outubro de 2002. Nasceu em 1972, no Vale de Santarém. Mudou-se para Lisboa em 1990, onde concluiu uma licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas. Estreou-se em livro com o ensaio A Noite dos Espelhos – Modelos e Desvios Culturais na Poesia de Al Berto (Frenesi, 1998). A primeira recolha de poemas surgiu dois anos depois na Campo das Letras. Todos contentes e eu também (2000) marcou o início de uma fecunda aventura poética. Desde então, Manuel de Freitas publicou inúmeros livros de poesia, tornou-se numa referência para alguns dos poetas portugueses mais jovens, motivou discussão. Com a organização da antologia Poetas Sem Qualidades (2002), abriu as portas da editora Averno, onde tem publicado alguns dos mais significativos volumes de poesia portuguesa dos últimos anos, assim como a emblemática revista Telhados de Vidro, co-dirigida com Inês Dias, cujo primeiro número viu a luz do dia em Novembro de 2003. Em 2006 foi-lhe atribuído o Prémio Literário Ruy Belo da Câmara Municipal de Sintra. Tradutor, crítico literário, poeta, ensaísta, editor, Manuel de Freitas é, sem dúvida, um dos poetas mais representativos da poesia portuguesa contemporânea. Não coube na Antologia.

5 comentários:

manuel a. domingos disse...

tendo em conta os últimos poetas que vêm na antologia, Manuel de Freitas é, sem dúvida, a falta mais evidente.

Graça Martins disse...

É UMA VERGONHA CULTURAL.
O Manuel de Freitas é um dos poetas mais relevantes da actual poesia portuguesa.

hmbf disse...

Manuel, evidentemente. Sleeping beauty, óbvio.

Anónimo disse...

isso leva-nos a dizer que este volume, tão grande que faz colapsar a mesa do café, é pequeno.

ruialme disse...

Eu creio q os autores já falaram de qualquer coisa como "termina nos autores revelados nos anos 90 do séc. XX" (cito de memória), portanto, há uma explicação lógica para esta ausência.