Um pequeno livro precioso. É o mínimo que se pode dizer de Cartas, Máximas e Sentenças (Edições Sílabo, 2009), de Epicuro, introduzido, traduzido e anotado por Gabriela Baião, mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica. O volume colige as cartas a Idomeneu, Heródoto, Pítocles e Meneceu, seguidas das denominadas Máximas Capitais e de algumas Sentenças Vaticanas, assim chamadas por terem sido descobertas em 1888 no Códice Vaticano grego 1950, do séc. XIV. Gabriela Baião resolveu ainda juntar aos textos a biografia que Diógenes Laércio dedicou ao filósofo do Jardim. Ainda bem que o fez. A deturpação histórica da escola epicurista, reduzida muitas vezes a um antro de depravação moral, é afastada por Diógenes ao apresentar-nos um Epicuro recto de «inexcedível generosidade para com os outros», ainda que a voz dos caluniadores nunca tenha deixado de ecoar na daqueles que jamais conseguirão entender algumas das mais importantes máximas filosóficas da “primeira das grandes escolas helenísticas”.
Nascido em Samos em 341 a.C., Epicuro fundou a sua escola nos subúrbios de Atenas. Afastado da turbulência citadina, mais próximo da paz campestre, o Jardim admitia mulheres, escravos, prostitutas e ostentava no pórtico a seguinte inscrição: «Visitante, terás aqui uma agradável estadia, pois aqui o bem supremo é o prazer!» Os adversários acusaram-no de promover orgias, foram colocadas a circular “cartas licenciosas” que lhe eram atribuídas, disseram que era irmão de um proxeneta, que auxiliava a mãe nas suas tarefas de curandeira, que plagiou Demócrito, que não era cidadão legítimo, que era obsceno, que «vomitava duas vezes por dia por causa dos excessos», etc.. Na verdade, pouco podemos hoje saber acerca da veracidade destas supostas calúnias. Podemos concentrar-nos nos escritos do réu e tentar compreender o que possa ter havido neles de tão perverso e incitador. Ainda que lhe tenham posto na boca a ideia de que os cínicos eram «inimigos da Grécia», encontramos na escola de Epicuro várias pontes com o cinismo, nomeadamente na defesa da autarquia enquanto princípio fundamental da vida feliz.
Não deixa de ser curiosa, por outro lado, a perspectiva de historiadores como Giovani Reale e Dário Antiseri, para quem «Epicuro é um percursor de Paulo no “espírito missionário”, não no conteúdo da mensagem, já que a fé epicurista é uma fé que se coloca do lado de cá, negadora de toda a transcendência e radicalmente ligada à dimensão do “natural” e do “físico”». Tal perspectiva parece-nos corroborável a partir de uma leitura da Carta a Heródoto, onde toda a doutrina epicurista sobre a Natureza aparece resumida em alguns preceitos de inspiração atomista, nomeadamente uma visão materialista da realidade que compreende a alma como «um corpo formado de partículas subtis, espalhado por todo o agregado» (p. 75). Não negando a existência dos deuses, Epicuro afasta-se das interpretações comuns: «Ímpio não é, por conseguinte, quem destrói os deuses da multidão, mas quem atribui as opiniões da multidão aos deuses» (p. 111). É compreensível que este tipo de pensamento causasse mossa junto daqueles que insistiam em amestrar as multidões com base num pensamento mitológico subjugador da vontade dos homens à vontade dos deuses.
A ética Epicurista resulta, pois, de uma concepção do mundo refutadora de dimensões idealistas e planos fantasmagóricos da realidade. Podemos ir mais longe na deambulação especulativa afirmando que tanto a República ideal platónica como a crendice popular que Epicuro tão bem terá conhecido de acompanhar a sua mãe nas artes mágicas, são os alvos fundamentais da vida festejada no Jardim. O prazer que se coloca no centro da vida feliz, enquanto ausência e denegação da dor, não tem outro sentido senão o de chamar as hordas à realidade, libertando-as dos erros e das falsidades que advêm de opiniões sem confirmação sensível. A morte nada é, seria frívolo perder tempo com ela. «O sábio, ao contrário, não recusa a vida nem teme a não-vida, pois nem a vida lhe pesa nem crê que a não-vida seja um mal» (p. 112). O prazer devolve a alma ao corpo, sustenta o fenómeno da sensação, ao mesmo tempo que resgata o corpo dos grilhões de uma certa ideia de alma (imortal) castradora da vontade. Porque a vida feliz não é concebível sem liberdade, Epicuro advoga não um culto despropositado do desejo — o excesso, mais que libertar, aprisiona —, mas antes a auto-suficiência e a prudência enquanto fiadores da vida justa. «Nenhum prazer é em si mesmo mau» (p. 122). Quem julgar o contrário, dedique-se à dor.
Nascido em Samos em 341 a.C., Epicuro fundou a sua escola nos subúrbios de Atenas. Afastado da turbulência citadina, mais próximo da paz campestre, o Jardim admitia mulheres, escravos, prostitutas e ostentava no pórtico a seguinte inscrição: «Visitante, terás aqui uma agradável estadia, pois aqui o bem supremo é o prazer!» Os adversários acusaram-no de promover orgias, foram colocadas a circular “cartas licenciosas” que lhe eram atribuídas, disseram que era irmão de um proxeneta, que auxiliava a mãe nas suas tarefas de curandeira, que plagiou Demócrito, que não era cidadão legítimo, que era obsceno, que «vomitava duas vezes por dia por causa dos excessos», etc.. Na verdade, pouco podemos hoje saber acerca da veracidade destas supostas calúnias. Podemos concentrar-nos nos escritos do réu e tentar compreender o que possa ter havido neles de tão perverso e incitador. Ainda que lhe tenham posto na boca a ideia de que os cínicos eram «inimigos da Grécia», encontramos na escola de Epicuro várias pontes com o cinismo, nomeadamente na defesa da autarquia enquanto princípio fundamental da vida feliz.
Não deixa de ser curiosa, por outro lado, a perspectiva de historiadores como Giovani Reale e Dário Antiseri, para quem «Epicuro é um percursor de Paulo no “espírito missionário”, não no conteúdo da mensagem, já que a fé epicurista é uma fé que se coloca do lado de cá, negadora de toda a transcendência e radicalmente ligada à dimensão do “natural” e do “físico”». Tal perspectiva parece-nos corroborável a partir de uma leitura da Carta a Heródoto, onde toda a doutrina epicurista sobre a Natureza aparece resumida em alguns preceitos de inspiração atomista, nomeadamente uma visão materialista da realidade que compreende a alma como «um corpo formado de partículas subtis, espalhado por todo o agregado» (p. 75). Não negando a existência dos deuses, Epicuro afasta-se das interpretações comuns: «Ímpio não é, por conseguinte, quem destrói os deuses da multidão, mas quem atribui as opiniões da multidão aos deuses» (p. 111). É compreensível que este tipo de pensamento causasse mossa junto daqueles que insistiam em amestrar as multidões com base num pensamento mitológico subjugador da vontade dos homens à vontade dos deuses.
A ética Epicurista resulta, pois, de uma concepção do mundo refutadora de dimensões idealistas e planos fantasmagóricos da realidade. Podemos ir mais longe na deambulação especulativa afirmando que tanto a República ideal platónica como a crendice popular que Epicuro tão bem terá conhecido de acompanhar a sua mãe nas artes mágicas, são os alvos fundamentais da vida festejada no Jardim. O prazer que se coloca no centro da vida feliz, enquanto ausência e denegação da dor, não tem outro sentido senão o de chamar as hordas à realidade, libertando-as dos erros e das falsidades que advêm de opiniões sem confirmação sensível. A morte nada é, seria frívolo perder tempo com ela. «O sábio, ao contrário, não recusa a vida nem teme a não-vida, pois nem a vida lhe pesa nem crê que a não-vida seja um mal» (p. 112). O prazer devolve a alma ao corpo, sustenta o fenómeno da sensação, ao mesmo tempo que resgata o corpo dos grilhões de uma certa ideia de alma (imortal) castradora da vontade. Porque a vida feliz não é concebível sem liberdade, Epicuro advoga não um culto despropositado do desejo — o excesso, mais que libertar, aprisiona —, mas antes a auto-suficiência e a prudência enquanto fiadores da vida justa. «Nenhum prazer é em si mesmo mau» (p. 122). Quem julgar o contrário, dedique-se à dor.
Escrito para o Rascunho.
3 comentários:
Resta saber por que razão mesmo quem não julga o contrário é incapaz de evitar a dor.
«Toda a dor deve ser ignorada. Na verdade, a que produz um intenso sofrimento é de curta duração e a que permanece mais tempo no corpo causa apenas um leve desconforto!» (Sentença Vaticana, 4). Talvez "o segredo" esteja em converter a dor ao prazer, mesmo quando o objectivo parece ser a supressão da dor (é curioso que o hinduísmo, advogando o despojamento absoluto, diz praticamente o mesmo, embora o corpo seja entendido de um modo diverso). Como? Buscando paz e serenidade na sabedoria, na autarquia (eco cínico), no auto-conhecimento e no auto-domínio (ecos socráticos), em suma, na prática da recta filosofia. Rir e filosofar, pois claro, porque: «O bem supremo e a libertação geram-se simultaneamente» (Sentença Vaticana, 41).
"Rir e filosofar". A receita é boa. Aplicá-la é que é lixado. (Fui educado num meio conservador; ainda penso duas vezes antes de escrever "fodido").
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