sábado, 16 de janeiro de 2010

TRESMALHADO

Fotografia de Jorge Simão.


Duas memórias e uma inconfidência. A primeira é de um homem a esvair-se em suor, em estado de pânico induzido pela presença das câmaras televisivas, numa conversa apresentada por Clara Ferreira Alves, onde também estava o escritor Rui Zink. Vi aquele homem e senti certas afinidades com o tal estado de pânico. Era poeta, salvo erro chamava-se António Cabrita. A segunda é mais certa, não corre o risco da adulteração fantasista da memória, pois está documentada. 17 de Novembro de 2000, café literário em volta do teatro e da poesia de Jaime Rocha, apresentação de António Cabrita. Fui ouvir e ver, mais pelo apresentador que pelo apresentado, confessei, e logo às primeiras me desarmou o tom já não aflito, mas até bastante descontraído, de quem falava para a plateia sem pingo de suor no rosto. Talvez o problema fosse mesmo do cenário televisivo, das lentes que roubam a alma a quem se deixa por elas capturar. Mais estranho ainda, num homem cuja relação com o cinema sempre foi de grande proximidade. Lá iremos. Antes disso, a inconfidência. Há tempos recebi uma longa Carta do Extremo Sul. Meu caro Henrique, assim começam as mais de 20 páginas da missiva. Andei eu em estado de pânico durante meses, pegava nas folhas, começava a lê-las, ficava a meio. Uma lição de poesia, pois claro, tendo por motivo o meu singelo Cinzeiro Azul. Sucede que nunca agradeci, que nunca acusei sequer a recepção da dita, que só muito depois de a ter recebido consegui lê-la do princípio ao fim, que me senti, sinto, sentirei tão grato pelo gesto, que as palavras se me travaram algures e não quiseram responder. O que dizer a alguém que perde mais de 20 páginas com a nossa delirante inutilidade? É que tenho por regra este sentimento muito natural de que a vida se fica pelo estrume, pelo que todo o tempo sobre a terra é de uma preciosidade incomparável, insubstituível, inalienável. Investir mais de 20 páginas de tempo em palavras que me saíram dos dedos não é coisa que se agradeça, é coisa para guardar do lado esquerdo do peito até que este se transforme no estrume «com que a morte mantém / estáveis as características do subsolo». Aqui fica então a inconfidência, no dia em que lembro ter o poeta António Cabrita nascido no Pragal a 16 de Janeiro de 1959. Fez o curso de Cinema do Conservatório Nacional, publicando mais tarde peças/guiões dos quais Duas Luas, Entrededos (INCM, Março de 1984) é exemplo a reter. De resto, a ligação ao cinema foi sempre muito forte. Durante vários anos, António Cabrita foi crítico da sétima arte nas páginas do jornal Expresso (entre 1988 e 2004). Também escreveu aí sobre livros, aí e noutros lugares: JL, O Jornal, DL, etc.. A poesia aparece cedo e em boa companhia. Alberto Pidwell Tavares (vulgo Al Berto) publica-lhe Oblíqua visão de um cristal num gomo de laranja ou perene o sangue que arrebata os anjos vingadores (1979), título do qual nunca mais saberemos nada. Seguem-se outros de poesia, mas também de contos, argumentos para cinema, assim como novas aventuras pelo campo editorial, com a extinta Íman, ou com a direcção da revista Construções Portuárias. Em 1997, recebe o Prémio Cesário Verde pelo magnífico Carta de Ventos e Naufrágios (Teorema, Novembro de 1997). Três anos depois, arruma parte considerável da sua produção poética no volume Arte Negra (Fenda, 2000). Sobre Combate de Flautas (&etc., 2003), escreveu António Guerreiro no Expresso: «Certo é que a poesia de António Cabrita é em tudo contrária a uma nova austeridade que encontramos em muitos poetas recentes. Nela, as metáforas são o próprio órgão do pensamento e, por isso, ficam às vezes submetidas a um exercício rebuscado». Mais recentemente, Bar La Fontaine foi galardoado com o O Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire. Emigrado em Moçambique, onde é hoje docente universitário, António Cabrita também não coube na antologia:

Ah, ser de um rebanho
tresmalhado:

e eis meia vida desperdiçada
a enxertar
flores silvestres
no lenho dos românticos —

muito bem providos
os olhos
cerzidos em ouro.


António Cabrita, in Carta de Ventos e Naufrágios, Teorema, Novembro de 1997, p.74.

4 comentários:

ruialme disse...

Vi Oblíqua visão de um cristal num gomo de laranja ou perene o sangue que arrebata os anjos vingadores, há pouco tempo, à venda na Poesia Incompleta. Não me lembro do preço.

E não falaste da prosa: Cegueira de Rios (1994), As cinzas de Maria Callas (1997) e Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo (2008). Nem do Inferno, escrito com Maria Velho da Costa (é uma peça de teatro).

hmbf disse...

Bem, dei por alto um toque à narrativa. Tenho esse Inferno cá por casa. uma coisa da Íman sobre os amores de Camilo. Comprei-o numa banca de livros em Lagos, por 1€. :-) Já gora, obras de António Cabrita aí inventariadas:

“Cegueira de Rios” (1995, Ficção)
“Carta de Ventos e Naufrágios” (1997, Poesia)
“As Cinzas de Maria Callas” (1997, Ficção)
“Arte Negra” (2000, Poesia)
“O Abysmos da Mão” (2001, Poesia)
“Nada do Outro Mundo” (no prelo, Teatro)
“Cidade Esmeralda” (no prelo, Teatro)
“Feitiços da Mulher Feia” (no prelo, Teatro)

jpt disse...

1. o cabrita é um tipo fantástico.
2. e mais coisas estão a sair, que ele não se acalma, e ainda bem

hmbf disse...

R2: ainda bem. Mandei mail.