terça-feira, 19 de janeiro de 2010

CONGESTÃO CEREBRAL


Mestre do horror, pai do policial, poeta maldito, assim aparece muitas vezes recordado o génio de Edgar Allan Poe. Nasceu em Boston, filho de actores itinerantes, a 19 de Janeiro de 1809. O pai terá morrido em 1810, falecendo a mãe no ano seguinte. Deixaram três órfãos. Edgar foi acolhido por John Allan, um comerciante de tabaco, William faleceu novo e a irmã Rosalie acabou por enlouquecer mais tarde. A tragédia de Edgar Allan Poe estava traçada. Ainda criança, denota uma forte inclinação para a poesia. John Allan, o pai adoptivo, leva-o para Inglaterra, onde fez os primeiros estudos. De regresso aos states, dedica-se à poesia satírica, estuda em colégios privados de Richmond, «tem uma paixão platónica pela mãe de um dos seus colegas, Jane Stanard, que vem a morrer tuberculosa em 1824». A morte foi sempre a melhor amiga de Poe. Passeia-se pela Universidade de Virgínia, mas o vício do jogo e as dívidas contraídas acabam por dar-lhe cabo dos planos. A relação com John Allan deteriora-se. Como se não bastasse, a paixão pela jovem Elmira Royster encontra a oposição das respectivas famílias. Pior ainda quando, de visita à amada, Poe descobre-a comprometida com outro indivíduo. Conta-se que terá estado presente na festa onde foi feito o pedido de noivado, apurando com Elmira a existência de cartas de amor interceptadas. Nada havia a fazer. Poe rompe com a sua família adoptiva, parte para Boston, junta-se ao exército e publica o primeiro volume de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827), a expensas próprias. Reaproxima-se de John Allan após a morte de Frances, a mãe adoptiva. Publica Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems (1829). A vida no exército não lhe correrá de feição. Poe tem um comportamento negligente, escreve versos satíricos que têm por alvo os oficiais, provoca a sua expulsão da academia, o que acontece a Janeiro de 1831. Vai viver para Baltimore, amparado pela tia Maria Clemm. Vê um conto seu ser premiado, enceta carreira nos jornais e nas revistas, mas também aprofunda o vício alcoólico. Em 1836 casa com a prima Virginia Clemm. Virginia tinha apenas 13 anos. Morrerá tuberculosa em 1847, depois de ter passado praticamente os últimos cinco anos de vida inválida. Muda-se para Nova Iorque, depois Filadélfia, colabora com a imprensa, publica contos fantásticos e recensões, faz-se valer da “vocação polemista” e, em Julho de 1838, publica a novela The Narrative of Arthur Gordon Pym. Agastado com a doença de Virginia, imerso em dívidas, refugia-se no álcool e nas drogas. Em 1843 vai a «Washington para uma entrevista relativa a um cargo nas alfândegas da administração Tyler, porém embriaga-se e arruína as hipóteses». Nesse mesmo ano inicia um circuito de conferências sobre poesia norte-americana. Almeja fama e sucesso com a publicação do poema The Raven (1845). Com a mulher bastante doente, «corteja literariamente a poetisa Frances Sargent Osgood». A depressão e acessos de loucura perseguem-no. Tenta suicidar-se com láudano. São publicados vários apelos à caridade para com Poe e a sua família. Virginia morre em 1847, Poe adoece gravemente, continua a trabalhar, é publicado em França, suscita o interesse de Baudelaire, mas já pouco havia a fazer pela sua recuperação. Mantém vários romances, dos quais os mais conhecidos terão sido com as poetisas Sarah A. Lewis e Sarah Helen Whitman. Chegou a estar noivo desta última, mas os excessos alcoólicos afogaram as núpcias. Cada vez mais dependente do láudano, quase morre novamente em Novembro de 1848. Em 1849 fica noivo de Elmira Royster Shelton, a namorada de infância agora viúva. Em Setembro desaparece por alguns dias. Perdido algures entre Richmond e Nova Iorque, é encontrado em absoluto estado de delírio numa taberna de Baltimore. Morre no hospital, a 7 de Outubro, vítima de «congestão cerebral»:

[SÓ]

Eu não fui, desde a infância
Como outros eram… não olhei
O que outros viam… não busquei
Na mesma fonte as minhas ânsias…
Não foi do mesmo poço que tirei
Minha amargura… meu coração
Não entoou, em coro, hinos de louvor…
E tudo o que eu amei, amei em solidão…
Então ─ na minha infância ─ no alvor
De minha vida atormentada, fui refém
Do mistério que ainda hoje sobrevém
Do abismo donde brota o mal e o bem…
Da torrente, da nascente…
Da rubra fraga ascendente…
Do Sol que em mim revolveu
No seu fulgor outonal…
Do clarão que ascendeu
Pelo espaço, e em mim rasou…
Do trovão, do temporal…
Da nuvem que se moldou
(Conquanto azul fosse o céu)
Em demónio e me ensombrou.


Edgar Allan Poe, in Obra Poética Completa, trad. Margarida Vale de Gato, Tinta-da-China, Março de 2009, p. 199. Do mesmo poema, publiquei ali uma versão minha em Julho de 2005. Relembro-a agora:




Desde a hora da infância eu não fui
Como outros foram - eu não vi
Como outros viram – não pude tomar
Minhas paixões duma primavera vulgar.
Da mesma nascente eu não traguei
A minha tristeza; eu não despertei
Para o júbilo comum o meu coração;
E tudo o que amei, eu amei em solidão.
Nesse tempo da infância ─ na madrugada
Da vida mais tormentosa ─ foi traçada
Das profundezas do bem e do mal
O mistério que me mantém sem igual:
Da torrente ou da fonte,
Do rubro penhasco do alto monte,
Do sol que gira em meu torno
Num matiz dourado de Outono ─
Do relâmpago no céu
Que tão perto de mim se deu ─
Da tempestade e do trovão,
E da nuvem que adquiriu a feição
(Quando azul era o resto dos Céus)
De um demónio aos olhos meus.

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