segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

DOUBT


John Patrick Shanley, realizador de Doubt, foi o argumentista de Alive (1993), um filme de que alguns se recordarão pelas cenas de “canibalismo”. Ironias da sobrevivência. Mais discreto, o filme que opõe Meryl Streep (1949) a Philip Seymour Hoffman (1967), dois actores multifacetados com vários desempenhos de excelência no currículo, volta a incidir sobre a problemática do dilema moral. Agora, já ninguém tem de comer carne humana para sobreviver. Pelo menos, literalmente. Mas no ambiente eclesiástico que suporta a acção, o dilema moral surge intensificado pela não excepcionalidade da situação vivida. Temos um padre progressista e uma freira conservadora em conflito no território – simbólico - de um colégio. Digo simbólico por naquele colégio vislumbrarmos um campo de decisão sobre o futuro, ao passo que as barreiras interpostas entre a directora do colégio e o padre estão directamente relacionadas com o passado de cada um deles. A montagem é inteligente, deixa o espectador numa expectativa nunca desmascarada. John Patrick Shanley, o realizador, joga com insinuações, sugestões, simulacros, induz-nos a pensar isto ou aquilo conforme as “constrições” de cada uma das personagens. Há uma criança problemática cujo problema desconhecemos, não é objectivado, ainda que seja sugerido. Há uma relação de índole desconhecida entre essa criança e o padre, mas várias sugestões são feitas no sentido de ficarmos a pensar que o padre poderia abusar da criança, que a criança – um preto num colégio de brancos – poderia denotar comportamentos homossexuais, que o pai da criança o agrediria por isso mesmo, etc. E depois há a desconfiança da irmã Aloysius, directora do colégio, baseada em boatos, insinuações, uma suspeição debilitada pela incerteza, fundamentada apenas numa fé que se revela demasiado frágil perante a ausência de prova. As homilias do padre vão pontuando a relação de desconfiança estabelecida entre ambos, o plano de insinuações nunca resolvidas que coloca cada um deles num problemático fosso de incertezas, como se cada um, falando com o outro, estivesse apenas a falar para si próprio, nunca sendo absolutamente claro na manifestação dos seus sentimentos e das suas dúvidas. Esta situação, geradora de qualquer tipo de boataria, gera igualmente a bisbilhotice, o desejo de ver para lá do visível. O que há de mais interessante no filme é, precisamente, esta teatralidade dos diálogos, onde o que fica por dizer parece sempre mais determinante para as acções do que aquilo que é dito. Olhamos para aqueles dois como quem lê um texto metafórico, tentando compreender o segundo sentido que se esconde por debaixo do véu dissimulador da verdade, um véu de silêncios ou de palavras, tanto faz, um véu que nos coloca o mais elementar desafio do entendimento: procurar espreitar por debaixo da fé. Jesus falava por metáforas, diz-se. Nas suas metáforas esconder-se-ia a verdade. Por que não falava ele por verdades preferindo exprimir-se através de metáforas será problema a decifrar pelos exegetas interessados no assunto. Talvez porque as metáforas exemplificam a verdade, talvez por não esperar que os crentes sentissem necessidade de bisbilhotar para lá da fé que a metáfora exige. Porque a fé, de algum modo, é já interpretação. Uma interpretação sem intriga, assente apenas no princípio do acolhimento. Faltando essa fé, instaura-se a dúvida. Instaurando-se a dúvida, abala-se a fé. O sentido crítico da fé estará sempre, por isso mesmo, mais em acreditar com dúvidas do que autoconvencer-se sem incertezas. Julgo que é isso que a irmã Aloysius descobre no final.

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