É um homem tépido
escrevendo a horas certas cartas
telegramas cansados palavras
no muro alto palavras desoladas
─ Abriram as rosas ─ disseram-lhe ─
as rosas decotadas do mês.
─ Alegra-te. Todavia
o homem entristece
cava no sangue
reescreve com uma caligrafia
cuneiforme enigmática
poemas de antigas civilizações
Condenaram este homem
mataram este homem
o tráfego leva-o nos braços
as mulheres amam-no muito pouco ou nada
os bêbedos afirmam ─ é nosso
e toda a gente pergunta ─ quem é?
António Barahona da Fonseca, do livro Capelas imperfeitas (1965), in Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, org. M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, Círculo de Poesia, Moraes Editores, Lisboa, 1971, 3.ª edição, pp. 639-640. Um percurso singular, uma personalidade controversa, um espírito perturbador. Nasceu em Lisboa a 7 de Janeiro de 1939. Oriundo de uma família nobre com ligações à monarquia, teve educação religiosa no liceu. Saiu de casa aos 18 anos. Foi anarquista, comunista, estudou na Faculdade de Letras de Lisboa, onde conheceu aquela que viria a ser a sua primeira mulher, a poeta Luiza Neto Jorge, durante uma conferência sobre García Lorca. Tinham ambos 20 anos quando se casaram. «Líamos as coisas um do outro. O que é interessante é que depois de nos termos separado – ela voltou a casar, entretanto – depois de passada aquela fase mais difícil, eu era uma visita quotidiana de casa dela. Não havia quase dia nenhum em que eu não a visitasse». Os primeiros livros surgem em edição de autor, patrocinados pela sua avó, na década de 1950. Foram posteriormente renegados. Por essa altura fazia parte do grupo surrealista que se reunia no Café Gelo. A amizade com Herberto Helder levou-o ao contacto com António Aragão, acabando por colaborar nos primeiros números de Poesia Experimental. Da embriaguez surrealista às experiências concretas, de tudo um pouco foi experimentando o poeta que um dia escreveu: «Bebia-se muito bagaço, cafés uma vez por outra, / o sangue podia beber-se à vontade: / bastava cortar as veias às mulheres que se aproximavam». O primeiro livro da bibliografia oficial data de 1961. Intitula-se Insónias e Estátuas. Mais tarde, manteve estreita amizade com o poeta Ruy Cinatti. Após a separação de Luiza Neto Jorge, apaixona-se por Eunice Muñoz. Estamos na década de 1970. Barahona da Fonseca acompanha Eunice numa tournée por África. Casam-se por lá, em Lourenço Marques, após um primeiro e intenso contacto do poeta com o islamismo. Em 1975, já convertido ao Islão, adopta o nome de Muhammed Rashid. Vem igualmente desta época a paixão pelo hinduísmo e pelo sânscrito. Subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, viajou pela Índia, entre 1981 e 1983, onde estudou sânscrito e aprofundou o conhecimento da cultura hindu. O resultado foi o trabalho de uma vida: a transcrição do Poema do Senhor – Bhagavad-Guitá (Relógio D’Água, 1996), acompanhada de introdução, notas e um glossário preciosíssimo. Depois de Eunice Muñoz, conhecem-se-lhe relações de maior proximidade afectiva com Maria Altina Martins, com quem viveu e viajou na Índia, e Maria del Pilar Andalúz y Calderón. Entre tudo isto, a polémica e as tomadas de posição controversas ocupam um lugar de destaque. Dos panfletos de cariz teológico contra a IVG aos elogios a Salazar, há todo um leque de temas abordados de um modo pouco convencional. Ainda que recentemente o poeta tenha declarado um mau entendimento das suas declarações, a verdade é que para a história ficará isto: «a obra Alicerces dos Telhados de Cristal colocou-o ao lado de quem atacava Salman Rushdie pela escrita de Versos Satânicos». Não admira, pois, que lhe tenha sido recusado o lugar de adido cultural em Goa. Menos compreensível será que não tenha cabido na Antologia.
3 comentários:
Podem organizar-se antologias com diversos fins e meter nelas o que aprouver às cabeças mais ou menos iluminadas que as levam a cabo. Mas numa antologia que, a avaliar pelo tamanho, se pretende o mais representativa e exaustiva possível não se compreendem critérios como os que levam à exclusão de um autor do calibre de António Barahona. Há esquecimentos e esquecimentos, mas este é demasiado grosseiro.
Não vejo muitos poetas da contemporaneidade que possam medir-se com Barahona no depuramento da linguagem, na riqueza de recursos estílisticos, no incrível fôlego visionário. Há grandes antologias ou antologias grandes. Parece que estamos perante uma antologia grande, boa para encher espaço em estantes incultas...
A antologia do António Barahona é outra.
Consta que é o senhor que se segue ao Abel Xavier na dita.
Saludos!
Saludos también para ti.
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