Sentei-me na esplanada do oceano à espera que um poema desse à costa. Preparei-me para longa espera com um livrinho de João Cabral de Melo Neto, a reprodução de uma conferência pronunciada em 1952. O livrinho foi publicado 30 anos depois, em Portugal, pela Fenda. Salvo erro, nessa altura o poeta brasileiro era cônsul na cidade do Porto. Poesia e Composição – A Inspiração e o Trabalho de Arte, assim se intitula o texto. Enquanto o poema não dava à costa, fui lendo vagarosamente a prosa de João Cabral. Ele contrapõe dois tipos de poetas, aquele que deixa o poema vir e aquele que se impõe ao poema. O primeiro aceita a inspiração, o segundo transpira; o primeiro produz poemas que são ecos imediatos da experiência, o segundo parte pedra; o primeiro faz do poema um depoimento subjectivo, insurge-se contra a profissionalização da poesia, o segundo violenta-se, amputa-se, trabalha o corte e o recorte da experiência. João Cabral adverte-nos para a impossibilidade das generalizações, concluindo com o reconhecimento de épocas em que «inspiração e trabalho artístico não se opunham», a espontaneidade não prescindia do domínio da lei, para, conhecendo-a, subvertê-la no seu íntimo, buscando uma originalidade que não advinha de inspirações momentâneas mas de um trabalho que inclui a inspiração. Não gosto de comparações com o passado. Geralmente, denotam uma ignorância grosseira do que foram os tempos antigos ou uma perspectiva facciosa acerca dos tempos modernos. Edgar Allan Poe, no ensaio intitulado A Filosofia da Composição, distancia-se de uma suposta maioria de escritores que afirmam compor a partir «de uma espécie de subtil frenesim, ou intuição extática». Para este autor, a originalidade não resultava tanto do impulso e da intuição como de uma trabalhosa procura. Parece-me evidente que este sentido do trabalho poético foi-se perdendo com os tempos. Daí que as palavras proferidas por João Cabral de Melo Neto, em 1952, ainda pareçam válidas nos dias de hoje: «O poeta se isola da rua para se fechar em si mesmo ou se refugiar num pequeno clube de confrades. Como ele busca, ao escrever, o mais exclusivo de si mesmo, ele se defende do homem e da rua dos homens, pois ele sabe que na linguagem comum e na vida em comum essa pequena mitologia privada se dissipará. O autor de hoje, e se poeta muito mais, fala sozinho de si mesmo, de suas coisas secretas, sem saber para quem escreve. Sem saber o que escreve vai cair na sensibilidade de alguém com os mesmos segredos, capaz de percebê-los. Aliás, sabendo que poucos serão capazes de entender perfeitamente sua linguagem secreta, ele conta também com aqueles que serão capazes de mal-entendê-la. Isto é, com o leitor activo, capaz de deduzir uma mensagem arbitrária do código que não pode decifrar». Li estas palavras bem no centro de uma paisagem fria:
Enquanto esperava que o poema chegasse, com a objectividade inspiradora de sempre, João Cabral foi-se perdendo na memória como um eco. Ele era como os pingos de maresia escorrendo na objectiva da máquina fotográfica. Os dias estão cada vez mais obscuros. Não se vislumbra grande coisa para lá da névoa. Somente a luz do farol guiando as ondas que empurram para o naufrágio pequenos troncos de madeira. Como eles, os poemas. Poemas depoimento, poemas testemunho, poemas confessionais, expressionistas, memorialistas, elegíacos, odes, canções, sonetos, baladas, poemas irónicos, satíricos, quotidianos, humorísticos, épicos, anedóticos, prosaicos, herméticos, claros como a morbidez das águas, metafóricos, cirúrgicos, clínicos, poemas invertidos, irracionalistas, desesperados. Os adeptos da autenticidade e da sinceridade serão sempre os primeiros a concordar com a ideia do poeta fingidor, pois neles nada há de mais sincero e autêntico do que fingir que se finge. Já eu, aqui à espera que o poema chegue e adepto de pouco mais que a minha insanidade, procuro apenas não escrever com medo, procuro não escrever a evitar a comparação, porque há algo que nos liga a todos indelevelmente. Não necessariamente um eco, talvez o movimento natural da respiração. Mas olho para fora de mim e vejo a Quitéria, também ela à espera de algo. Talvez à espera do seu poema. Talvez um novo amor, lançado ao mar em dia de tempestade. Estes troncos dados à costa são barcos de areia afundados na superfície da morte. Bem daqueles que flutuam no horizonte e ninguém sabe vivos senão por percebê-los à distância de uma luz que sinaliza a sua presença. Podemos pois todos ficar à espera que o poema se dê, podemos partir à procura do poema. Ser encontrado pelo poema ou encontrá-lo é hoje pouco mais que indiferente. Poucos, muito poucos, o lerão. Talvez eu sentado à beira do oceano, talvez tu, já morto, naufragando como um tronco dado à costa.
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