quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

MEMÓRIA DO PRESENTE

25.
Pelo cão!
Hoje aconteceu-me o facto mais importante
de toda a vida geográfica do meu corpo:
cerceei a minha dionisíaca barba até à novidade,
sendo apenas magnânimo com o indefeso bigode.
Dizem os da casa que me encontro irreconhecível:
sofri sem dúvida um verdadeiro e higiénico avatar,
sou um outro homem renascido inopinadamente,
um outro travo biológico de esperança isenta
...a recém descoberta de uma insólita leviandade!

Se não fossem os pêlos implantados no rosto,
o que seria de mim sem tão benéfico auxílio?
Não poderia fugir à monotonia do quotidiano,
nem tão-pouco efigiar mais ou menos exemplarmente
as mais esquipáticas figuras ou faces fictícias:
personagens ambíguas do sonho real que vivo,
justificações sãs da minha pirética estesia.

Hoje sou a pintura suave e verde de Modigliani,
trago o bigode vincado na aridez do meu fácies,
duas rugas côncavas a estiolar a harmonia da cor,
uns lábios belfos e vermelhos fesceninos de dor,
uns olhos garços tauxiados na placidez do rosto.
No coração sobressai o amarelo obeso de van Gogh,
o sexo é um magento osso daliano em convulsões,
as pernas são devaneios matizados de Kandinsky,
os braços dois cones azuis aplainados de Picasso.

Sou agora a pintura universal e humana,
o meu corpo a tela em constante viagem,
o pintor é o sibilino tempo da estiagem,
o último quadro o estertor rouco da agonia;
um féretro pesado de difíceis recordações,
uma cova da última emoção, uma plangente alegria.


Silva Carvalho, in Memória do Presente, Brasília Editora, Porto, 1977, p. 41. Pobre desgraçado. Nasceu a 8 de Fevereiro de 1948 em Vila do Conde. Frequentou a Universidade de Coimbra antes de se exilar em Paris, em 1969. Regressou a Portugal em 1975, licenciando-se em Filologia Românica. Foi professor do ensino secundário, Leitor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, E.U.A. (1985-89), na Universidade de Goa, Índia (1990-91) e na Universidade de Massachusetts, Dartmouth, E.U.A. (1997-2001). Leccionou na Escola Secundária de Santa Maria, em Sintra, até 2008. Publicou na Black Sun, na Fenda, entre outras editoras ditas de circulação restrita. Não coube na Antologia.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nunca permaneci tão profundo e submerso em pensamentos que se estendem até ao indizível.
Penso para ser presença onde o silêncio é excesso
e levíssima a palavra cristalina.

Fernando esteves Pinto, in Na Escrita e no Rosto, Europress Editora, Lisboa, 1993,p.51. Ninguém o grama. Nasceu a 18 de Fevereiro de 1961 em Cascais. Frequentou a Praia do Peixe antes de zarpar até Olhão, onde viveu o exílio cultural. Foi electricista e fez um curso de cantaria onde esculpiu candeeiros e mulheres nuas. Vendeu as máquinas à conta da União Europeia e abriu negócio tipo chinês. Estudou no liceu de S. João do Estoril e teve um romance com a professora de desenho. Dái o gosto pela escrita. Publica em editoras à beira da falência e pequenas bancadas editoriais. que se foda a antologia.