Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto,
A minha mocidade, o meu amor,
A minha vida em flor!
É mentira! É mentira!
Se o meu filho respira,
Se o meu corpo consente,
Covardemente,
A minh'alma não quer!
Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher!
Basta-me ser feliz!
E o meu instinto diz:
— «Acabou-se! Acabou-se! Agora renuncia:
Começa a tua noite: acabou-se o teu dia!
Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade
Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade.
Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis.
Já foste flor: agora és só raiz.» —
Não pode ser! É injusta a minha sorte!
Não quero dar vida a quem me traz a morte!
O meu destino há-de ter outro brilho!
Vida, quero viver! E morro, morro...
Filho!
Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto!
Filho da minha dor, eu já não choro — canto!
Filho que Deus me deu! Porquê, Senhor,
Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?!
Dai-me outra voz que nunca tenha dito
Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito...
Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo,
Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo...
Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado,
Que não tenha presente nem passado...
Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram
A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram...
Filho, por que seria? Ao vires para mim,
Mudaste num jardim
Os espinhos da minha carne triste...
E como conseguiste
Dar uma cor de sol às horas mais sombrias?
Meu menino, dorme, dorme,
E deixa-me cantar
Para afastar
A vida, um papão enorme...
Meu menino, dorme, dorme...
Vamos agora brincar...
Que brinquedo, meu menino?
O mar, o céu, esta rua?
Já te dei o meu destino,
Posso bem dar-te a Lua.
Toma um navio, um cavalo,
Toma agora o mar sem fundo...
Ainda achas pouco? Deixá-lo!
Se quiseres, dou-te o mundo!
Mas por que não vens brincar?
Por que preferes chorar?
Jesus! Que tem o meu filho?
Que vida estranha no brilho
Do seu olhar?
Uma vida inquieta e obscura
Anda a queimar-lhe a frescura ...
Ainda hoje, meu filho, não sorriste
E o teu olhar é triste...
Cheiras a noite, a luto, a azebre...
Senhor! O meu filho tem febre!
O seu hálito queima, o seu olhar escalda...
Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda
E um perfume de flor,
Agora tem na boca um amargo sabor
E cheira a noite, a luto, a azebre...
Senhor! O meu filho tem febre!
Tirai-me dos olhos toda a luz!
Livrai-me da blasfémia... Deus! Jesus!
Pois se o meu filho morre, se agoniza,
Por que há flores no chão que ele não pisa?
Se num coval o hei-de pôr, de rastros,
Por que estarão tão altos os astros?
Senhor, eu sou culpada… Eu sei o que é o pecado…
Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado...
Para mim, não há mal que não aceite,
Mas ele, ainda tão perto do teu céu!
A sua vida era beber-me leite...
No olhar com que me olhava tinha um véu
De neblinas, de névoas de outras vidas...
Às vezes, tinha as pálpebras descidas
E punha-se a chorar no meu regaço
Com saudades, talvez, do céu, do espaço...
O meu filho tem febre!
Por que andam a cantar pelos caminhos?
Por que há berços e ninhos?
Vida! O meu filho era belo,
O meu filho era forte!
Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte!
Vida! Vida! Vida!
Louvado seja Deus! A morte foi-se embora!
Já não tens febre agora!
Louvado seja Deus! O meu menino vive,
Este menino, o meu, que só eu tive!
E pude blasfemar!
E o meu menino chora, e eu posso já cantar!
E o meu menino canta e eu posso já chorar!
O meu menino vive e toda a vida canta,
Toda a terra é uma fresca e sonora garganta!
Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja!
Louvado seja Deus!
Louvado seja!
Fernanda de Castro, de Trinta e Nove Poemas (1941), in Líricas Portuguesas – 2.ª série, org. Cabral do Nascimento, Portugália Editora, 3.ª edição, Setembro de 1967 pp. 243-246. Casada desde 1922 com António Ferro, o da revista Orpheu, nasceu em Lisboa, a 8 de Dezembro de 1900. Era filha de um oficial da marinha que enviuvou tinha a jovem poeta apenas 12 primaveras cumpridas. Estudou em Portimão e na Figueira da Foz, onde concluiu a quarta classe. O pai parte para a Guiné em 1913. Fernanda de Castro seguirá viagem na companhia da mãe, de saúde já bastante debilitada, e o irmão. A mãe acabará por falecer na Guiné, regressando Fernanda a Portugal para terminar os estudos liceais em Lisboa. Estreia-se nas lides literárias muito cedo, com o livro de poemas Antemanhã (1919). A partir de 1920, começa a frequentar os salões literários de Lisboa. Ao longo da vida, granjeará popularidade como declamadora, poetisa, romancista, dramaturga, novelista, autora de livros infantis, de guiões cinematográficos, conferencista. Um ano depois de estar casada, nasce-lhe o primeiro de dois filhos. António Quadros, de seu nome, revelar-se-á um dos mais destacados ensaístas portugueses. Conviveu com alguns modernistas brasileiros, colaborou com várias publicações, foi a única mulher no núcleo de fundadores da SECTP (actual SPA). A proximidade com o antigo regime, permitiu-lhe também criar e desenvolver a Associação Nacional dos Parques Infantis. Traduziu peças de teatro, Rilke, Katherine Mansfield, entre outros. Em 1969 foi-lhe atribuído o Prémio Nacional de Poesia, mas já anteriormente, em 1945, fora a primeira mulher a obter o prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa, pelo romance Maria da Lua. Escritores como David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Natércia Freire, entre muitos outros, elogiaram a sua obra. Morreu no dia 19 de Dezembro de 1994, acamada e quase cega, dez dias depois de completar noventa e quatro anos de idade. Escreveu praticamente até ao fim da vida. Para uma biografia mais detalhada, sugere-se a leitura destas páginas. Não coube na Antologia.
1 comentário:
http://fernanda-decastro.blogspot.com/2010/03/berta-singerman-diz-poema-de-fernanda.html
Um abraço
AQF
Enviar um comentário