sábado, 9 de janeiro de 2010

DEVORADOR DE ASPIRINAS



Muitos portugueses olham com desdém a produção poética brasileira. Eu prefiro desdenhar desse desdém. Metam os olhos em João Cabral de Melo Neto. Nasceu a 9 de Janeiro de 1920 na cidade de Recife. Era primo, pelo lado do pai, do poeta Manuel Bandeira, um dos principais impulsionadores do modernismo brasileiro. Futebolista com pergaminhos, trocou os futebóis pelas tertúlias literárias. Conheceu Drummond de Andrade numa viagem ao Rio de Janeiro, participou no Congresso de Poesia do Recife em 1941 com um breve ensaio intitulado Considerações sobre o poeta dormindo. Em 1942 publicou o primeiro livro, intitulado Pedra do Sono. Mudado para o Rio, foi dispensado, por motivos de saúde, da Força Expedicionária Brasileira. Vemo-lo a trabalhar no Departamento de Administração do Serviço Público. Em 1946 iniciou uma viajada carreira diplomática, casou-se com Stella Maria Barbosa de Oliveira e teve o primeiro de cinco filhos. Viveu em Barcelona, cidade onde adquiriu uma tipografia artesanal com a qual publicou livros de poetas brasileiros e espanhóis. Privou aí com o pintor Miró, dedicando-lhe um ensaio estupendo simplesmente intitulado Joan Miró: «Talvez o mal das academias, hoje, não esteja na mutilação que possam representar para a livre expressão da personalidade. Talvez seu maior mal esteja em sua meio ridícula inutilidade». Em 1968, acabou por ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Em Barcelona, conheceu ainda o poeta e artista Joan Brossa. Partiu para Londres em 1950, mas regressou ao Brasil, dois anos depois, acusado de subversão. Só em 1954 será reintegrado na carreira diplomática. Voltou a Barcelona, andou por Marselha, Madrid, Sevilha, Genebra, Berna, Assunção, no Paraguai, onde viveu três anos, Dakar, Equador, Honduras, Porto ─ publicando nessa altura o ensaio Poesia e composição (1982), na Fenda ─, entre muitas outras cidades do mundo. Entretanto, foi vendo a sua obra reconhecida e premiada, o próprio foi alvo de várias condecorações institucionais. Stella faleceu em 1984. O poeta voltou a casar-se em 1986, com a poetisa Marly de Oliveira. Aposentou-se em 1990, atormentado por terríveis dores de cabeça motivadas por uma doença degenerativa incurável. Dizem que há muito tomava de três a dez aspirinas por dia. Anunciou que iria parar de escrever. É-lhe atribuído o Prémio Camões. Marly escreve o discurso de agradecimento. João Cabral de Melo Neto é assaltado por um estado depressivo sem aparente solução. Morreu no dia 9 de Outubro de 1999. Seja sua a última palavra:

Podemos verificar que o conceito de composição de cada artista, da mesma maneira que seu conceito de poema, é determinado pela sua maneira pessoal de trabalhar. Libertando da regra, que lhe parece, e com razão, perfeitamente sem sentido, porque nada parece justificar a regra que lhe propõem as academias, o jovem autor começa a escrever instintivamente, como uma planta cresce. Naturalmente, ele será ou não um homem tolerante consigo mesmo, e esse homem que existe nele vai determinar se o autor será ou não um autor rigoroso, se pensará em termos de poesia ou em termos de arte, se se confiará à sua espontaneidade ou se desconfiará de tudo o que não tenha submetido antes a uma elaboração cuidadosa.
O espectáculo da sociedade aparecerá a esse jovem autor coisa muito confusa e ele não saberá descobrir, nela, a direcção do vento. Por isso, preferirá recorrer ao espectáculo da literatura. A partir da vida literária que se está fazendo no momento, ele fundará sua poesia. O confrade lhe é mais real do que o leitor. Ora, no espectáculo dessa vida literária ele pode encontrar autores justificando todas as suas inclinações pessoais, críticos para teorizar sobre sua preguiça ou sua minúcia obsessiva, grupos de artistas com que identificar-se e a partir de cujo gosto condenar todo o resto. Aí começa a descoberta de sua literatura pessoal. Essa descoberta é curiosa de acompanhar-se. Primeiro, o jovem autor vai procurando-se entre os autores de seu tempo, identificando-se primeiro com uma tendência, depois com um pequeno grupo já de orientação bem definida, depois com o que ele considera o seu autor, até o dia em que possa dar expressão ao que nele é diferente também desse seu autor. É então neste momento, em que depois da volta ao mundo se redescobre, com uma nova consciência, a consciência do que o distingue, do que nele é autêntico, consciência formada à custa da eliminação de tudo o que ele pode localizar em outros, que o jovem autor pensa ter desencavado aquele material especialíssimo, e exclusivo, com que construir a sua literatura.

2 comentários:

Daniel Ricardo Barbosa disse...

Compartilho do seu desdém e desdenho igualmente da atitude daqueles que limitam suas leituras a partir de nacionalidades. A arte não poderia jamais ser restringida a fronteiras de qualquer tipo. Torna-se arte justamente quando a criação põe os nacionalismos e preconceitos de lado para brindar a algo maior que poderia ser chamado de universalismo. Cá no Brasil também se desdenha de uma porção de coisas. O regionalismo é exaltado mesmo que de maneira velada. E ai daqueles que ousarem tentar combatê-lo. Estarão fadados silêncio que se lhes impõem. Espero sinceramente que um dia possamos quebrar tal silêncio ou desdém com vozes que gritem pelo o que é belo, e não por terem vindo ao mundo dentro destas ou daquelas fronteiras.
E, se me permite mudar de assunto sendo um pouco mais pessoal, gostaria de lhe perguntar se já leste Augusto dos Anjos. Um abraço!

hmbf disse...

É isso, Daniel. Nunca li Augusto dos Anjos, mas obrigado pela sugestão.