quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

REVENDO BLACKMAIL


Este post não é sobre escutas. Nem sei se é sobre um filme de Hitchcock chamado Blackmail (1929), concebido inicialmente para ser filmado num registo mudo. A versão sonora terá sido uma opção posterior, algo que fica evidente nos minutos iniciais. Blackmail começa com uma detenção cujo significado é meramente introdutório. Os detectives da New Scotland Yard são representados a partir de gestos teatrais que falam pelas personagens. Os planos do rosto dispensam palavras, intensificam expressões que dialogam entre si sem que nos seja necessário escutar os diálogos induzidos pelos lábios em movimento. O som surge após este primeiro momento. Escutam-se passos, o estrado de um antigo carro da polícia, uma buzina, algumas vozes. No entanto, o jogo de silêncios percorre o filme como um jogo de sombras. Há mensagens cifradas, códigos imperceptíveis, é-nos dado ouvir o riso provocado por segredos que nunca serão desvendados. Os recados silenciosos, os segredos e as insinuações dão corpo ao suspense. O silêncio alimenta-o, é a acção por detrás da intenção, ou seja, é o não audível, já como decisão, que sustenta a intenção com que se concretizará este ou aquele gesto. Para quem desconheça a história, aqui fica um resumo:
1. Alice é vítima de uma tentativa de violação, conseguindo escapar depois de assassinar o violador, de nome Crew, com uma faca;
2. Alice namora com um detective da Scotland Yard que, encarregado de investigar o caso, encontra uma luva da namorada no local do crime;
3. Frank, o detective, tenta encobrir a namorada, acabando vítima de chantagem por parte de um indivíduo que não só tinha visto Alice com Crew antes do crime, como penetrara no local e encontrara a outra luva que provava ter sido Alice a assassina;
4. O chantagista, homem com cadastro, acaba por falecer numa perseguição da Scotland Yard, depois de ter sido apontado por uma vizinha de Crew como possível autor do crime.
O que Alfred Hitchcock filma nesta história é a fragilidade daquilo que tomamos por verdadeiro. Há sempre uma sombra vigilante disposta a aproveitar-se do mal dos outros, máxima relevante num contexto moral. Neste filme, a questão essencial é epistemológica. Os “jogos de sombra sonoros” que matizam a fita são o elemento intensificador do suspense, mas também revelam uma especial atenção a certos pormenores com que apuramos a verdade dos factos. Repare-se na importância do registo áudio como prova. Costuma-se dizer que «nem tudo aquilo que parece, é». Também se diz que aquilo que por aí se vai ouvindo não corresponde necessariamente à verdade. Não acredites em tudo o que ouves. Mas a verdade é que a confissão, não garantindo a verdade, pelo menos oferece-nos uma verdade possível. Ademais, nenhuma escuta logra ouvir o que nos vai no coração. Hitchcock distorce as falas, entrega-nos a sussurros imperceptíveis. Numa cena magistral, toda a sua genialidade vem à superfície no rosto de Alice. Esta encontra-se a tomar o pequeno-almoço com a família e olha para a faca do pão, induzindo no espectador uma relação traumática entre aquela faca e a faca com que fora cometido o crime da noite passada. Não satisfeito, Hitchcock coloca na mesma sala uma vizinha bisbilhoteira que não se cansa de falar do crime. Não percebemos bem o que ela diz, porque o realizador distorce-lhe a voz, mantendo apenas clara a pronúncia de uma palavra que se repete ad nauseam: justamente a palavra faca, faca, faca, faca, faca. A perturbação no rosto de Alice é evidente. O eco é interrompido abruptamente quando Alice larga a faca no chão. Algo se passa com a pobre rapariga. A consciência moral começa a tomar-lhe conta do corpo, das emoções, dos medos, dos anseios. A verdade, que só ela e o namorado ficarão a saber, a verdade que nos é mostrada enquanto espectadores, é também a prova da farsa que subsidia o apuramento dessa mesma verdade. Ora, num diálogo entre Frank e Alice é mantida uma conversa sobre o cinema:
─ Ainda não viste o filme «Impressões Digitais». Aposto que falharam em todos os pormenores.
─ Não sei porquê. Até contrataram um criminoso para realizador.
O cinema, meus caros, assim como qualquer outra arte, é a impressão digital da realidade. E o realizador, o artista, um criminoso que distorce essa mesma realidade em função do que pretenda mostrar-nos. Isto é, em função do que pretenda manter oculto, silencioso, como um segredo irrevelável.

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