sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

«UM DOS MAIORES POETAS DO DESEJO»


Ela diz-me que aprecia o entusiasmo com que falo da obra alheia. Respondo-lhe que sou como Picabia: porque me é impossível compreender o que se passa entre o frio e o quente, julgo necessário vomitar os mornos. Ela desconhece. Prometo-lhe, então, o dia seguinte. Francis Picabia nasceu em Paris a 22 de Janeiro de 1879. Breton chamou-lhe «detractor, que assim se quis, de todas as convenções morais e estéticas». Este enfant terrible veio ao mundo pela mão de pai cubano e mãe francesa, num berço aristocrato-burguês que começou a revelar-se algo desconfortável depois de Marie Cécile Davanne, a mãe, ter sido devorada pela tuberculose. Tinha o artista sete anos, para logo de seguida perder igualmente a avó materna. O avô era fotógrafo, entusiasmou o neto para a coloração de fotografias, mas este inclinava-se mais para as «fantasias exteriores e espirituosas» que habitam «pessoas às quais ninguém “rói a corda”». A Ecole des Arts Décoratifs foi, neste contexto, uma opção previsível. Em 1899, estreia-se como “artista” no Salon des Artistes Français, embora tenha vindo a preferir o Salon d’Automne e o Salon des Indépendants para começar a impressionar o “espírito parisiense”, isto é, aquele que «possui o segredo de fazer da chicória chicória, dos espinafres espinafres, e da merda caca». Estas palavras, oriundas da revista 391, fundada e dirigida por Picabia entre 1917 e 1924, são ilustrativas do que se seguiu aos primeiros anos de afirmação “reputativa”. 1909 é o ano do casamento com Gabrielle Buffet. Novas músicas embalam o coração do artista. Rupturas estéticas, do impressionismo ao abstracto, da aceitação ao repúdio, banido por galerias, público e críticos, passeando-se pelo fauvismo, futurismo, cubismo, modernismo e todos os demais ismos que serão posteriormente e sistematicamente triturados pela liberdade dadaísta. A amizade com Duchamp foi, pois claro, fundamental. Assim como o encontro com Apollinaire. A Primeira Grande Guerra rebenta, Picabia zarpa para Cuba, passa por Nova Iorque, desenha máquinas, pinta-as, mostra-as, ao mesmo tempo que a neurastenia e a depressão o perseguem. Mas ele foge. Barcelona, Caraíbas, Nova Iorque serão os refúgios da guerra exterior e interior. É em Barcelona que começa a escrever poesia, publicando aí a sua primeira colecção sob o título Cinquante-deux-miroirs (1917). Também é nesta altura que surge a revista 391:

Braque acaba de comprar um Citroën para continuar a fazer arte. Ultimamente entrou em casa com a mudança de velocidades dentro das calças.
Derain acaba de comprar um Citroën para levar a passeio Louis Vauxcelles e Jacques Blanche.
Picasso acaba de comprar um Citroën que sobe maravilhosamente às árvores. Diz que a viatura lhe urina na mão.
Matisse tem realmente um Citroën.
Metzinger comprou uma capota Citroën.
Juan Gris comprou um assento Citroën.
Archipenko comprou um limão Citroën.
Francis Picabia tem um Citroën de socorro.
Citroën comprou um quadro cubista e o cubismo é todo ele um quadro Citroën.

Tradução portuguesa de Mário Cesariny. Do Citroën não sabemos, mas Gabrielle Buffet foi trocada por Germaine Everling no regresso a Paris. Tratamentos na Suiça afastam-no da pintura, mas aproximam-no da poesia. Contacta com Tristan Tzara, separa-se da primeira mulher e dos quatro filhos, parte para a aventura dadaísta na companhia de Germaine. Com Tzara e Breton, a festa Dada desdobra-se em revistas, publicações de ordem diversa, happenings, livros. Picabia publica Jesus-Christ Rastaquouère em 1921. Depois é o que se sabe: conflitos internos, inveja, egos hiperbólicos, desmembraram o grupo. Picabia prossegue sozinho, compõe colagens, polemiza com panfletos apontando espingardas contra o surrealismo, instala-se na Côte d’Azur levando uma vida que dará azo a todo o tipo de especulações, apaixona-se por Olga Mohler, uma jovem contratada para tomar conta de Lorenzo, filho de Picaia com Germaine Everling. Tornam-se famosas as soirées do casino organizadas por Picabia, a quantidade infindável de veículos que adquire, o dinheiro que esbanja durante os anos passados entre o Château de Mai, construído perto de Cannes, e Paris. Picabia é a estrela dos clubes nocturnos, das galas, da vida mundana. Vive a três, com o coração dividido entre Germaine e Olga. As relações com Gabrielle Buffet, Germaine Everling e Olga Mohler acabam por pautar-lhe os períodos artísticos. A Segunda Grande Guerra apanha-o já na companhia de uma só mulher: Olga Mohler. Continua a trabalhar, regressando às fases figurativas dos primeiros anos. Distancia-se dos movimentos vanguardistas, assume posições apolíticas, abandona a ostentação e o luxo, pinta de um modo cada vez mais realista. Sofre a primeira hemorragia cerebral. Regressa com Olga a Paris, ao mesmo tempo que regressa também às letras. Publica Thalassa dans le desert (1945). Em 1949 é organizada uma retrospectiva da sua obra, são instantes de celebração efémera: assaltam-lhe a casa no momento da estreia e deixam-no sem cheta. Os últimos anos não serão especialmente felizes. A arteriosclerose rouba-lhe a fonte de sobrevivência, a pintura. Morre a 30 de Novembro de 1953.

A CRIANÇA

Gastou-se o Outono
pela criança
de quem se gostou.
Como um abutre
sobre uma carcaça,
diminui a família
e já desaparece
como borboleta.


Francis Picabia, in Antologia do Humor Negro, org. Andre Breton, trad. Jorge Silva Melo, Edições Afrodite, Abril de 1973, p. 306

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