sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ABRAÇOS DESFEITOS


Quando nos morre alguém querido, a raiva fala por nós: tanto filho da puta no mundo e só morrem os bons. Depois olhamo-nos ao espelho e interrogamo-nos. E eu, por que razão continuo vivo? Serei mau de mais para morrer? Serei só mais um desses que escapam à morte sem tento nem esforço? A morte daqueles que nos são queridos recoloca-nos no mundo, oferece-nos uma dúvida limite acerca da nossa própria personalidade e das debilidades inerentes à sua construção. Mas a morte das personagens que odiamos, por razões mais ou menos conscientes, mais ou menos próximas, mais ou menos justificáveis, também.

Pedro Almodóvar pinta a morte com as mesmas cores que oferece ao amor. Nos seus filmes, ambas as dimensões da vida humana se confundem recorrentemente. Hable com ella (2002) talvez tenha sido o momento mais alto desta correlação. A narrativa dos seus filmes desenrola-se como um novelo de lã emaranhado, mostra-nos uma teia de relações humanas condicionada por sentimentos contraditórios que o amor e a morte encerram na sua intrincada complexidade. É, por excelência, o realizador do crime passional. Ciúme e vingança, desejo, paixão e obsessão, rancor, ressentimento, ódio, crime, são alguns dos elementos que (des)compõem o amor almodovariano.

Los Abrazos Rotos (2009) não é o melhor dos seus filmes. A espaços, torna-se entediante e previsível na abordagem do encantamento que aproxima as diversas personagens. Talvez as fragilidades do argumento, algo rebuscado na forma como procura atribuir sentido a cruzamentos relacionais dispensáveis, se devam à comunhão evidente que ali se processa entre amor carnal e criação cinematográfica. Temos um realizador de cinema apaixonado por uma candidata a actriz que, por acaso, é só a mulher do produtor do filme. O motivo está dado, agora são necessários os condimentos que ergam sobre a base um edifício sólido e apreciável. Esses condimentos acabam por ser a falsidade dos amores por conveniência em contraponto à verdade dos amores inconvenientes.

A presença da temática cinematográfica ─ da elaboração de um argumento à produção, desta à realização, da realização à montagem ─ é, neste filme, o reforço de uma convicção acerca da verdade: a verdade esconde-se atrás de um pseudónimo, ela não é o que se vê porque o que se vê é aquilo que se mostra e o que se mostra nem sempre corresponde à verdade. Cinema é arte. Não é verdade. A cegueira que atinge a personagem principal, um realizador convertido à escrita de argumentos, torna-se o elemento mais irónico deste colorido.

Penélope Cruz, cujo desempenho nunca precisa de ser brilhante para brilhar, tem no papel de secretária com o sonho de ser actriz uma função sintetizadora das mulheres que Almodóvar transformou em representações do universo feminino. Ela deixou-se sequestrar por um velho empresário, tão rico quão obsessivo, para posteriormente perseguir um sonho que a levou a um amor fatal. Desse amor, restam memórias, fotografias rasgadas que importa reconstruir, um filme que urge remontar, resta a imagem invisível que perdura no coração do malogrado amante como uma ferida à espera de sarar.

2 comentários:

jaa disse...

Se só morrem os bons, hmbf, a circunstância de nós estarmos vivos não se pode dever a sermos demasiado bons para morrer mas a não sermos suficientemente bons. O que é provavelmente verdade (falo por mim). Não consigo decidir é se isso é bom ou não.

E ainda não vi este filme do Almodovar. Mas a sua frase de que o desempenho da Penélope nunca precisa de ser brilhante para brilhar é perfeita.

hmbf disse...

JAA, é óbvio. Eu queria escrever outra coisa. Corrigido.