sábado, 6 de fevereiro de 2010

MANO FORTE


António José Forte nasceu no dia 6 de Fevereiro de 1931, na Póvoa de Santa Iria. Esteve ligado ao movimento surrealista através do denominado grupo do Café Gelo, convivendo de perto com Mário Cesariny, Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, Herberto Helder, entre outros. «Jovens, alguns adolescentes, todos rebeldes, a crítica à cultura vigente era a actividade quase constante». Escrevia-se poesia, desenhava-se poesia, vivia-se poesia, num clima de “crítica ao obscurantismo” que rapidamente encontrou os seus inimigos. Em 1958, Cesariny organizou a colecção A Antologia em 1958. Forte estrear-se-á em livro, dois anos depois, nessa mesma colecção, com o livro 40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes numa Girândola Implacável e Outros Poemas:

AINDA NÃO

Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem

ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça

ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração


Já antes, António José Forte publicara alguns textos na revista Pirâmide (n.º2, 1959), encetando uma colaboração dispersa por jornais (A Rabeca, Notícias de Chaves, Correio do Ribatejo, O Templário, Diário de Lisboa, A Batalha, JL) e revistas (Contraponto – Cadernos de crítica e arte, Pravda – Revista de Malasartes, &etc) que nunca deixará de manter. Diga-se, no entanto, que o chamado grupo do Café Gelo constituiu já uma “segunda geração surrealista” que, não tendo sido a primeira, seria injusto classificar “de segunda”. Num texto publicado em 1986 no JL, Forte elogiou o grupo chamando a atenção para a publicação da antologia Grifo, em 1970, onde se reuniu, pela última vez, o núcleo duro da malfeitoria. Findos os tempos da juventude, Forte tornou-se funcionário da Fundação Calouste Gulbenkian, desempenhando funções, durante mais de 20 anos, de Encarregado das Bibliotecas Itinerantes. A itinerância levou-o a Vieira do Minho, Tomar, Portalegre, Santarém. Casou-se com a pintora Aldina, natural de Caldas da Rainha, autora de uma tese de licenciatura sobre o Grupo do Café Gelo e colaboradora plástica de várias editoras. Lembrava o poeta: «Longe vão os tempos em que as Bibliotecas Itinerantes eram consideradas obra do demónio pelos padres do Minho e agentes de propaganda subversiva pelos presidentes de Câmara do Alentejo, com as inevitáveis honrosas excepções». Morreram as biliotecas itinerantes, morreram os cafés, morreram os grupos, morreu António José Forte. Foi no dia 15 de Dezembro de 1988. No ano seguinte, foi editado Corpo de Ninguém, onde se reuniram todos os livros do poeta publicados em vida. A integral apareceu posteriormente, com o título Uma Faca Nos Dentes, ilustrações de Aldina e prefácio de Herberto Helder:

O POETA EM LISBOA

Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha ─ numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.

António José Forte, in Uma Faca Nos Dentes, 2.ª Edição, prefácio de Herberto Helder, edição de Zetho Cunha Gonçalves, Parceria A. M. Pereira, 2003.

6 comentários:

fallorca disse...

E eu acabo de perder mais um dente. Naifa, só de bolso

margarete disse...

porra, obrigada por este "bocadinho", Henrique
Bom domingo
e um abraço

hmbf disse...

Fallorca, já eu tenho um canhão entre os dentes. Pronto a disparar. :))

Margarete, eu é que agradeço a tua visita :)) Volta sempre e um abraço também para ti. Domingo será a trabalhar :(((

Luis Eme disse...

fiquei curioso com a pintora Aldina da nossa terra. sabes mais coisas dela?

hmbf disse...

Luis, só o que se diz por aí (net e tal) e a nota biográfica que aparece na badana do livro do AJF.

Arthur Santos disse...

Grande poeta infelizmente esquecido.
Tomei a liberdade de incluir o seu link no me Blog:
http://rimasfotoscompanhia.blogspot.pt/