A primeira edição portuguesa de O Mundo Alucinante data de 1971. Agora reeditado pelas Publicações Dom Quixote, o romance de Reinaldo Arenas (n. 1943 – m. 1990) adquire um novo sentido. Há quase quarenta anos, este era um romance escrito por uma vítima do comunismo castrista. Arenas andou de braço dado com a revolução cubana até esta ter tentado destruir-lhe a identidade. De raízes paupérrimas, juntou-se aos barbudos com apenas quinze anos. Foi descobrindo o verdadeiro rosto que se escondia por detrás das barbas revolucionárias à medida que alimentava a inteligência com a formação oferecida pelo novo regime. Frequentou a Universidade de Havana, trabalhou na Biblioteca Nacional José Martí, onde foi acumulando dados sobre a vida de frei Servando Teresa de Mier, personagem central deste seu primeiro romance, galardoado em 1966 com uma menção honrosa num primeiro prémio que ficou por atribuir. Na oligarquia em que vivemos actualmente, caciquista e moralmente decrépita, o sentido da narrativa é outro. Já não temos apenas um romance escrito por uma vítima do comunismo castrista, mas também uma espécie de biografia fantástica de um ser em confronto permanente com as hipocrisias que regem o mundo.
Na introdução, ficam claros os propósitos do autor: demarcar-se do realismo socialista ─ «o chamado realismo parece-me ser precisamente o contrário da realidade» (p. 20) ─ escrevendo um romance sob a forma, passe a contradição, de poema «informe e desesperado» e, ao mesmo tempo, recriar-se na vida de uma personagem histórica com a qual os elementos identificativos são mais que evidentes. Importa lembrar que, apesar de escrito antes da experiência ostracista que levou o autor à prisão, apesar de anterior às acusações de “desvio ideológico”, por razão de uma postura assumidamente homossexual, contrária ao machismo revolucionário, há neste romance uma espécie de presságio hiperbólico do que viria a ser a carreira de exilado que Arenas foi obrigado a carregar até ao suicídio nova-iorquino. Também Servando Teresa de Mier (n. 1763 – m. 1827), um sacerdote dominicano com dotes para a oratória, proveio da miséria e viveu evadindo-se das veneráveis fogueiras da Inquisição, uma ameaça que teve de suportar com sucessivos encarceramentos e respectivas fugas. Livros proibidos, vozes amordaçadas, foram sempre o efeito preferido da canalha subjugada ao poder.
Arenas persegue os passos de frei Servando levando-nos do México a Espanha, daqui até França, passando por Itália, novamente Espanha, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos. Terminaremos no México, não sem antes passarmos por Havana. Dados biográficos históricos aparecem misturados com elementos fantasiosos, numa perspectiva da história que extravasa todos os limites da historiografia convencional. Seria imprudente falarmos de biografia, ou mesmo de romance histórico, sendo talvez preferível falarmos de um retrato cruel que assume por objecto uma vida e um mundo que não podem ser resumidos realisticamente, sob pena de nos escapar o que têm de absurdo a alicerçar factos cuja racionalidade parece ausente. O espectáculo do mundo actual não é diferente. Diria que vislumbramos a perspectiva histórica mais objectiva nesta forma de irrealismo. Repare-se que os primeiros sermões que levaram frei Servando ao cárcere questionavam os argumentos evangelizadores do poder espanhol e a apropriação que estes haviam feito do mito de Nossa Senhora da Guadalupe. Sacrilégio, heresia, blasfémia, gritarão os nobres parasitas. As mesmas palavras, ou seus sinónimos pagãos, são hoje proferidas pelos ceguetas que teimam em não aprender a conviver com a liberdade dos outros.
O resto facilmente se imagina. Que pode esperar um homem condenado pelo Poder? O abandono e o desamparo. Arenas escreve: «A paisagem é sempre muito árida nestes lugares onde bispos, arcebispos e vice-reis têm o Poder, pois é como se o tivesse o próprio Satanás» (p. 67). E prossegue: «Em Roma, pensava que ia conhecer uma cidade santa, mas depois de a ter percorrido por duas vezes não vi mais que miséria rodeando o povo, sobrecarregado com os constantes impostos da igreja, que se aproveita da ignorância para encher as arcas. Foi isso que aí vi, como aliás por toda a parte» (p. 174). Mas esta percepção fortalece a vítima. E então o frade aplica-se na luta pela independência da sua terra, o México, alimenta um ódio indelével pelas «extravagâncias despóticas e miseráveis de Espanha», é desterrado, preso, foge, volta a ser preso e torna a fugir, conspira, encontra aliados que se convertem em inimigos e vice-versa, e tudo isto nos é descrito com um sentido de humor que é o humor estrambólico de um pesadelo inacreditável, porque «mesmo nos acontecimentos mais dolorosos há uma mistura de ironia e brutalidade, que faz de toda a verdadeira tragédia uma sucessão de calamidades grotescas, capazes de provocar o riso» (p. 149). A lição que Reinaldo Arenas nos oferece a partir de um olhar sobre as vivências de Servando Teresa de Mier é a daqueles que tomam para si as rédeas da liberdade contra a hipocrisia, contra a bajulice dos aduladores, contra a(s) desonestidade(s) do mundo político.
Na introdução, ficam claros os propósitos do autor: demarcar-se do realismo socialista ─ «o chamado realismo parece-me ser precisamente o contrário da realidade» (p. 20) ─ escrevendo um romance sob a forma, passe a contradição, de poema «informe e desesperado» e, ao mesmo tempo, recriar-se na vida de uma personagem histórica com a qual os elementos identificativos são mais que evidentes. Importa lembrar que, apesar de escrito antes da experiência ostracista que levou o autor à prisão, apesar de anterior às acusações de “desvio ideológico”, por razão de uma postura assumidamente homossexual, contrária ao machismo revolucionário, há neste romance uma espécie de presságio hiperbólico do que viria a ser a carreira de exilado que Arenas foi obrigado a carregar até ao suicídio nova-iorquino. Também Servando Teresa de Mier (n. 1763 – m. 1827), um sacerdote dominicano com dotes para a oratória, proveio da miséria e viveu evadindo-se das veneráveis fogueiras da Inquisição, uma ameaça que teve de suportar com sucessivos encarceramentos e respectivas fugas. Livros proibidos, vozes amordaçadas, foram sempre o efeito preferido da canalha subjugada ao poder.
Arenas persegue os passos de frei Servando levando-nos do México a Espanha, daqui até França, passando por Itália, novamente Espanha, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos. Terminaremos no México, não sem antes passarmos por Havana. Dados biográficos históricos aparecem misturados com elementos fantasiosos, numa perspectiva da história que extravasa todos os limites da historiografia convencional. Seria imprudente falarmos de biografia, ou mesmo de romance histórico, sendo talvez preferível falarmos de um retrato cruel que assume por objecto uma vida e um mundo que não podem ser resumidos realisticamente, sob pena de nos escapar o que têm de absurdo a alicerçar factos cuja racionalidade parece ausente. O espectáculo do mundo actual não é diferente. Diria que vislumbramos a perspectiva histórica mais objectiva nesta forma de irrealismo. Repare-se que os primeiros sermões que levaram frei Servando ao cárcere questionavam os argumentos evangelizadores do poder espanhol e a apropriação que estes haviam feito do mito de Nossa Senhora da Guadalupe. Sacrilégio, heresia, blasfémia, gritarão os nobres parasitas. As mesmas palavras, ou seus sinónimos pagãos, são hoje proferidas pelos ceguetas que teimam em não aprender a conviver com a liberdade dos outros.
O resto facilmente se imagina. Que pode esperar um homem condenado pelo Poder? O abandono e o desamparo. Arenas escreve: «A paisagem é sempre muito árida nestes lugares onde bispos, arcebispos e vice-reis têm o Poder, pois é como se o tivesse o próprio Satanás» (p. 67). E prossegue: «Em Roma, pensava que ia conhecer uma cidade santa, mas depois de a ter percorrido por duas vezes não vi mais que miséria rodeando o povo, sobrecarregado com os constantes impostos da igreja, que se aproveita da ignorância para encher as arcas. Foi isso que aí vi, como aliás por toda a parte» (p. 174). Mas esta percepção fortalece a vítima. E então o frade aplica-se na luta pela independência da sua terra, o México, alimenta um ódio indelével pelas «extravagâncias despóticas e miseráveis de Espanha», é desterrado, preso, foge, volta a ser preso e torna a fugir, conspira, encontra aliados que se convertem em inimigos e vice-versa, e tudo isto nos é descrito com um sentido de humor que é o humor estrambólico de um pesadelo inacreditável, porque «mesmo nos acontecimentos mais dolorosos há uma mistura de ironia e brutalidade, que faz de toda a verdadeira tragédia uma sucessão de calamidades grotescas, capazes de provocar o riso» (p. 149). A lição que Reinaldo Arenas nos oferece a partir de um olhar sobre as vivências de Servando Teresa de Mier é a daqueles que tomam para si as rédeas da liberdade contra a hipocrisia, contra a bajulice dos aduladores, contra a(s) desonestidade(s) do mundo político.
Escrito para o Rascunho.
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