sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

RARIDADE

Não cedo à tentação de olhar para as árvores como quem olha edifícios humanos. A estrutura das árvores não obedece à lógica dos homens. Elas não foram pensadas, por isso nos parecem sempre mais acolhedoras. Os pássaros que descansam o voo nos ramos devem olhar para as árvores como antigamente os cavaleiros errantes olhavam para as estalagens.
Mas, por vezes, o meu olhar resvala na fé. Então, cedo à tentação de olhar para alguns edifícios humanos como quem perscruta uma árvore. E eu perscruto as árvores com os olhos da comoção. Entro nesses edifícios, sinto-lhes a vibração, sento-me a descansar o voo e medito, não oro, em favor dos homens que suaram para que pudesse eu pousar o meu espírito no trabalho que tiveram.

Ainda há dias, passeando junto à ria, pude mais uma vez constatar essa transmutação que transforma em abrigo o espelho das águas e em branda ondulação as fachadas dos edifícios. Casas antigas, pintadas às riscas, como se vestissem um pijama para que os nossos olhos encontrem nelas o conforto do algodão. Ali passeantes, como que adormecidos, sentimo-nos em casa andando pelas ruas.

Pode dar-se inclusive o caso de pousarmos as pernas numa esplanada. Pedimos o costume: um café cheio, um pastel de nata com canela e uma água com gás. Ateamos o cigarro, folheamos as páginas de um livro que trazemos por companhia e, subitamente, é-nos o colo assaltado por visita inesperada. Tudo conflui, nestes momentos, para uma estranha e rara harmonia. O homem, as casas, o gato e a ria. Escrever a história desses encontros é, talvez, o elemento mais artificial da reunião vivida. Por que a escrevemos? Talvez por pressentirmos e temermos a sua raridade.

Ílhavo, Praia da Costa Nova, Aveiro (2010).

3 comentários:

Daniel Ricardo Barbosa disse...

Embora possa parecer (e talvez realmente o seja) artificial, agradeço por compartilhar através das letras tão raro momento de harmonia. Escreva sempre que o raro encontro acontecer, pois a comunhão e todo o mais que se sente ao ler relato de tais vivências nada tem de artificial. Grande abraço!

MJLF disse...

Que Miau simpático!

hmbf disse...

Obrigado.