MEFISTÓFELES. Mui bom proveito
Vos faça o banho quente, que é mer’cido!
Johann W. Goethe, in Fausto
Vos faça o banho quente, que é mer’cido!
Johann W. Goethe, in Fausto
Tenho um sentimento ambivalente do mundo. Se por um lado consigo deleitar-me com as maravilhas que ele nos oferece, por outro lado deprimo-me amiúde com os horrores que ensombram essas mesmas maravilhas. Seria superficial considerar-me optimista ou pessimista, mas ainda mais banal dizer-me realista. Entalado entre dois pólos, julgo que a maleita que melhor condiz com o meu temperamento é uma qualquer forma de distúrbio bipolar que ainda não tomou definitivamente conta de mim por razões tão simples de serem explicadas como encontrar uma agulha num palheiro. Porque não tenho palheiro e as agulhas estão todas devidamente arrumadas no seu lugar, concentro-me num mapeamento do mundo que os leitores poderão julgar em função de critérios subjectivos e, por isso mesmo, discutíveis. Mas o que a paisagem tem para me oferecer é um mundo profundamente desigual, assimétrico, injusto, não sei se melhor ou pior que no passado, até porque essa percepção agudizaria ainda mais a subjectividade do diagnóstico, portanto um mundo incoerente, absurdo a ponto de nele observarmos territórios riquíssimos em termos de recursos naturais, mas paupérrimos em termos de qualidade de vida, como se a riqueza natural fosse incompatível com a felicidade dos homens, pois neste mesmo mundo aqueles que a natureza terá, aparentemente, menos beneficiado são, estranhamente, os que denotam vidas mais opulentas. Norte e sul. Podemos ir diminuindo o campo de visão, diminuí-lo a ponto de pouco mais restar para ver do que aquilo que se passa à nossa volta. Um bairro servirá de barómetro e tudo se revelará incompreensivelmente semelhante. Um bairro é um mundo. Sucede que num bairro o mundo aproxima-se-nos, deixamos de necessitar de intermediários para pintarmos a tela, as notícias que nos dão conta da extrema violência longínqua abeiram-se à ponta do nariz, o corpo treme com um medo incomparavelmente alienador, a doença ameaça tomar-nos conta da carne e a descida aos infernos transforma-se numa realidade que psicólogos e psiquiatras empenhados na catalogação dos males poderão enquadrar à medida das suas próprias aflições. Uma criança suicida-se porque é objecto de violência continuada. Homens e mulheres suicidam-se nos seus locais de trabalho porque são objecto de outras formas de violência continuada. Há quem não aguente a pressão, nem arrumado num escafandro sobrevivem esses cuja sensibilidade desce aos infernos a ponto de entrar em colapso. O diabo e seus demónios passam a ser metáfora apenas para quem assiste à descompensação, mas transformam-se numa indubitável e insustentável realidade, um terror que se apodera do corpo, um medo que domina e tudo torna possível. Até pactos com o diabo. Vem isto a propósito de Heartless, o filme de Phillip Ridley que arrecadou o Grande Prémio do Fantasporto deste ano, assim como prémios para melhor realização e melhor actor. Jim Sturgess interpreta um jovem que desce aos infernos para pactuar com Mefistófeles, numa versão pós-moderna de Fausto onde o velho estudioso é um jovem atormentado por um rosto manchado à nascença. O pacto metamorfosear-lhe-á o rosto, mas também o transformará num agressor, ou seja, em mais um desses demónios que contribuem para uma realidade negra, uma realidade onde já nem pela ambivalência o coração logra resistir, pois nesta realidade o inferno é mesmo o mundo do qual fazemos parte. De certa forma, podemos pensar que a personagem central do filme acaba por se entregar à morte. Vê-lo a ser consumido pelas chamas recoloca-nos no tal plano de ambivalência onde iniciámos a viagem. É que ver alguém a libertar-se do inferno, mesmo que abdicando da vida, não pode senão sugerir-nos algum consolo. Quanto ao filme, é assim-assim.
1 comentário:
Bem vindo a "um novo mundo"...
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