A indignação perante o que aconteceu ao cubano Orlando Zapata Tamayo, de que partilho por ser contra todo o tipo de determinismo político, faz-nos também pensar na hipocrisia com que o mundo ocidental censura estas situações. Este mesmo mundo, autoproclamado de civilizado, por oposição, certamente, a um mundo incivilizado que eu continuo a ter dificuldades em reconhecer nos mapas geopolíticos cá de casa, arroga-se no direito de condenar os inimigos do capitalismo ao mesmo tempo que denota uma estranha complacência para com variadíssimos atentados aos direitos humanos perpetrados por aqueles que se julgam donos da ética e da moral. Do Sunday, Bloody Sunday que os U2 registaram numa canção às imagens de Abu Ghraib, da evangelização aos casos de pedofilia, passando pela Inquisição que mancha o historial criminoso da Igreja Católica Apostólica Romana, da máquina de morte que os alemães alimentaram durante a Segunda Grande Guerra às limpezas étnicas nos Balcãs, da escravatura globalizada ao colonialismo no Médio Oriente, da brutalidade policial repetidamente exercida sobre os manifestantes do chamado contrapoder a variadíssimos casos de censura, coerção, pressão, limitação política, económica e social exercidos sobre aqueles que defendem o direito a pensar e agir livremente, o que não falta é exemplos de um terror que abala a legitimidade dos profetas da universalidade dos direitos humanos. Chegámos a um ponto em que ninguém tem legitimidade para impor um qualquer sistema de valores a quem quer que seja. O mundo está coberto por um imenso telhado de vidro. Debaixo desse telhado, são cada vez menos as referências credíveis, os homens cujas acções e saber podem servir-nos de exemplo. E são meramente individuais. Quando se deixam enredar nas tramas gregárias do poder, acabam quase invariavelmente por se transformar em monstros clonados daqueles de quem foram vítimas. Daí que seja cada vez mais urgente questionarmos os fundamentos do estado. Cito:
A concentração de toda a força física nas mãos da autoridade central é a função primária do estado e é a sua característica decisiva. De maneira a tornar isto claro, considere-se o que não se pode fazer sob a forma de domínio do estado: ninguém na sociedade governada pelo estado pode tirar a vida de outrem, fazer-lhe mal fisicamente, tocar na sua propriedade ou prejudicar a sua reputação excepto com a permissão do estado. Os mandatários do estado têm poderes de tirar a vida, infligir castigos corporais, tirar propriedade como multa ou por expropriação, e afectar o estatuto ou reputação de um membro da sociedade.
Isto não equivale a afirmar que em sociedades sem estado se possa tirar a vida impunemente. Mas em tais sociedades (por exemplo, entre os bosquímanos, os esquimós, e as tribos da Austrália Central) a autoridade central que protege a família contra transgressores é inexistente, fraca, ou esporádica, e foi aplicada entre os Crow e outros índios das planícies ocidentais só à medida que surgiam situações. Nas sociedades sem estado, a família ou o indivíduo são protegidos por meios não explícitos, pela participação total do grupo na supressão do transgressor, pela aplicação temporária ou esporádica de uma força que deixa de ser necessária (e portanto deixa de ser usada) quando a causa da sua aplicação pertence ao passado. O estado dispõe de meios para suprimir o que a sociedade considera incorrecto ou criminoso: polícia, tribunais, prisões, instituições que funcionam explícita e especificamente nesta área de actividade. Além disso, estas instituições são estáveis no quadro de referência da sociedade, e permanentes.
Quando o estado se formou na antiga Rússia, o príncipe dominante afirmou o poder de impor multas e infligir a dor física e a morte, mas não permitia a qualquer outro que agisse assim. Afirmou mais uma vez a natureza monopolista do poder de estado excluindo do seu exercício qualquer outra pessoa ou organismo. Se um súbdito sofresse algum mal às mãos de outro sem a permissão expressa do príncipe, isto era uma transgressão e o transgressor era punido. Além disso, o poder do príncipe só podia ser delegado explicitamente. A classe dos súbditos desta forma protegidos era assim cuidadosamente definida, claro; de maneira nenhuma eram protegidos desta forma todos os que estavam dentro do seu domínio.
Nenhuma pessoa ou grupo se pode substituir ao estado; os actos do estado só podem ser realizados directamente ou por delegação expressa. O estado, ao delegar o seu poder, transforma o seu delegado em agente do estado. O poder coercivo dos polícias, juízes, guardas prisionais, deriva, segundo as regras da sociedade, directamente da autoridade central; bem como o dos cobradores de impostos, dos militares, guardas fronteiriços, e coisas semelhantes. A função autoritária do estado assenta no seu comando destas forças como seus agentes.
Lawrence Krader, in Formation of the State, citado por Robert Nozick, in Anarquia, Estado e Utopia, trad. Vitor Guerreiro, Edições 70, Novembro de 2009, pp. 154-155.
O que pensar quando o estado ou os seus agentes se transformam em agressores? O que pensar e, sobretudo, o que fazer para que não sejamos nós as próximas vítimas?
A concentração de toda a força física nas mãos da autoridade central é a função primária do estado e é a sua característica decisiva. De maneira a tornar isto claro, considere-se o que não se pode fazer sob a forma de domínio do estado: ninguém na sociedade governada pelo estado pode tirar a vida de outrem, fazer-lhe mal fisicamente, tocar na sua propriedade ou prejudicar a sua reputação excepto com a permissão do estado. Os mandatários do estado têm poderes de tirar a vida, infligir castigos corporais, tirar propriedade como multa ou por expropriação, e afectar o estatuto ou reputação de um membro da sociedade.
Isto não equivale a afirmar que em sociedades sem estado se possa tirar a vida impunemente. Mas em tais sociedades (por exemplo, entre os bosquímanos, os esquimós, e as tribos da Austrália Central) a autoridade central que protege a família contra transgressores é inexistente, fraca, ou esporádica, e foi aplicada entre os Crow e outros índios das planícies ocidentais só à medida que surgiam situações. Nas sociedades sem estado, a família ou o indivíduo são protegidos por meios não explícitos, pela participação total do grupo na supressão do transgressor, pela aplicação temporária ou esporádica de uma força que deixa de ser necessária (e portanto deixa de ser usada) quando a causa da sua aplicação pertence ao passado. O estado dispõe de meios para suprimir o que a sociedade considera incorrecto ou criminoso: polícia, tribunais, prisões, instituições que funcionam explícita e especificamente nesta área de actividade. Além disso, estas instituições são estáveis no quadro de referência da sociedade, e permanentes.
Quando o estado se formou na antiga Rússia, o príncipe dominante afirmou o poder de impor multas e infligir a dor física e a morte, mas não permitia a qualquer outro que agisse assim. Afirmou mais uma vez a natureza monopolista do poder de estado excluindo do seu exercício qualquer outra pessoa ou organismo. Se um súbdito sofresse algum mal às mãos de outro sem a permissão expressa do príncipe, isto era uma transgressão e o transgressor era punido. Além disso, o poder do príncipe só podia ser delegado explicitamente. A classe dos súbditos desta forma protegidos era assim cuidadosamente definida, claro; de maneira nenhuma eram protegidos desta forma todos os que estavam dentro do seu domínio.
Nenhuma pessoa ou grupo se pode substituir ao estado; os actos do estado só podem ser realizados directamente ou por delegação expressa. O estado, ao delegar o seu poder, transforma o seu delegado em agente do estado. O poder coercivo dos polícias, juízes, guardas prisionais, deriva, segundo as regras da sociedade, directamente da autoridade central; bem como o dos cobradores de impostos, dos militares, guardas fronteiriços, e coisas semelhantes. A função autoritária do estado assenta no seu comando destas forças como seus agentes.
Lawrence Krader, in Formation of the State, citado por Robert Nozick, in Anarquia, Estado e Utopia, trad. Vitor Guerreiro, Edições 70, Novembro de 2009, pp. 154-155.
O que pensar quando o estado ou os seus agentes se transformam em agressores? O que pensar e, sobretudo, o que fazer para que não sejamos nós as próximas vítimas?
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