Braga, 11 de Março de 1940, Rua de São Geraldo, freguesia da Cividade. Nasce Dinis Albano Carneiro Gonçalves, filho de um professor primário e de uma doméstica. O pequeno Dinis frequentará a escola primária em Torre de Dona Chama, aos cuidados da avó paterna e de um tio-avô que era padre. Em 1949, a família partiu para Moçambique, passando a residir em Tete. Dinis Gonçalves prosseguirá os estudos no Colégio Camões e no Instituto Liceal na Beira, dirigido por padres maristas. Este convívio recorrente com gente ligada à igreja não é de descurar, mais ainda se tivermos em conta que o seu pai era um homem com formação teológica. Nos finais dos anos 50, a família mudou-se para Quelimane. Foi por estas terras que Dinis Albano Carneiro Gonçalves começou a transformar-se em Sebastião Alba, um poeta de corpo inteiro. Com 21 anos, a tropa trocou-lhe as voltas. Arregimentado no Contingente Geral, em Boane, a cerca de 20 Km de Lourenço Marques, desertou ao segundo dia, acabando por ser detido e acusado de «extravio de objectos militares». Os objectos eram um cinto e o bivaque. Enquanto aguardou julgamento na prisão, ainda se ausentou quatro vezes. Foi condenado a 15 meses de pena, cumpridos na 23ª Enfermaria do Hospital Miguel Bombarda. A consciência política tornava-se mais aguda, pelo que não é de estranhar o surgimento do primeiro livro de poemas (por vezes, há entre ambas as realidades uma estranha relação de causa e efeito). Poesias foi publicado em 1965, patrocinado por um jornalista amigo do pai de Sebastião Alba. Dele, pouco resistirá. Daqui em diante, o poeta sobreviveu como jornalista e angariador de publicidade. Em 1966, conheceu Felisbela do Livramento Silva. Casaram-se três anos depois e tiveram duas filhas. Entretanto, Sebastião Alba foi travando conhecimento com vários escritores e colaborou com a revista Caliban, dirigida por João Pedro Grabato Dias e Rui Knopfli. 1974 será um ano determinante: morre-lhe, vítima de acidente de viação, o irmão, também jornalista e escritor, António Carneiro Gonçalves, e publica O Ritmo do Presságio, com apresentação de José Craveirinha:
Quando nascemos entramos
no nome pela voz dos pais:
─ Dinis Albano…
Íntima e sonora identidade.
Chamam-me e volto
a cabeça, dissuadido.
Na voz duma mulher
os nomes são
interiores a nós.
(Na dum polícia, desprendem-se,
como se apenas
os envergássemos).
Um amigo dirige-se-nos,
e as letras do nome
─ tu?! ─ correm de doçura.
Um dia, o nome,
por capricho duma veia ou dum fonema,
ocultamente, esvai-nos.
E por detrás dele,
alheados dos ritos,
nem sabemos da sua
cessação.
Após a independência de Moçambique, o apoio à FRELIMO valeu-lhe um convite para frequentar um curso de formação em Inhanbane e a nomeação para Administrador da Província da Zambézia, cargo que abandonou passados alguns meses. Leccionou Economia Política e fixou-se, com a família, em Maputo, contactando aí com a nata intelectual de Moçambique. Um dos comparsas era o poeta Luís Carlos Patraquim, com quem terá levado a cabo algumas actividades contestatárias. Em 1982, Sebastião Alba publicou, pelas Edições 70, o livro A Noite Dividida:
Gosto dos amigos
que modelam a vida
sem interferir muito;
os que apenas circulam
no hálito da fala
e apõem, de leve,
um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
entre quem são
e quem eles me parecem,
o meu agrado inclina-se
para o mais reconciliado,
ao acordar
com a sua última fraqueza;
o que menos se preside à vida
e, à nossa, preside
deixando que o consuma
o núcleo incandescente
dum silêncio votivo
de que um fumo de incenso
nos liberta.
Pouco depois, abandonou Moçambique e regressou a Braga com a mulher e as filhas. Mais tarde, estas serão confiadas à avó materna e passarão a viver em Miratejo. Sebastião Alba continuou a publicar alguns poemas, nomeadamente na revista Colóquio/Letras. Em Braga, assumiu uma vida solitária, de andarilho, desempenhando por períodos breves algumas actividades. O vício do álcool foi-se agravando. Tentou várias curas de desintoxicação. Em 1993, o divórcio e visitas esporádicas às filhas. Morre-lhe a mãe. Michel Laban entrevista o poeta e publica o texto no volume Moçambique ─ Encontros com Escritores. Alguns amigos subscreveram um pedido de subsídio de mérito cultural, que acabou por lhe ser atribuído pelo Ministério da Cultura. Ainda assim, a rua era a nova casa de Sebastião Alba. Herberto Helder sugeriu à Assírio & Alvim a publicação da obra reunida do poeta, o que veio a acontecer em 1996:
Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame…
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.
Por essa altura, Sebastião Alba era o caso da poesia portuguesa (sempre ávida e pródiga de/em casos). Em 1997, ganhou o Grande prémio de Poesia ─ Imobiliária Teixeira & Filhos. Fez-se representar por uma das filhas e prescindiu do dinheiro a favor dos herdeiros. Alguns poemas seus foram traduzidos para alemão, recusou vários convites para iniciativas culturais, a saúde foi-se degradando. A 14 de Outubro de 2000, termina os seus dias como vítima fatal de atropelamento e fuga. O corpo permaneceu por identificar durante três dias. A 7 de Outubro, escrevia a Vergílio Alberto Vieira: «Se um dia encontrarem morto "o teu irmão Dinis", o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá».
Fonte: Uma Pedra ao Lado da Evidência, selecção e apresentação de Vergílio Alberto Vieira, Campo das Letras, Novembro de 2000. Infelizmente não consegui apurar a autoria da imagem. As minhas desculpas.
Quando nascemos entramos
no nome pela voz dos pais:
─ Dinis Albano…
Íntima e sonora identidade.
Chamam-me e volto
a cabeça, dissuadido.
Na voz duma mulher
os nomes são
interiores a nós.
(Na dum polícia, desprendem-se,
como se apenas
os envergássemos).
Um amigo dirige-se-nos,
e as letras do nome
─ tu?! ─ correm de doçura.
Um dia, o nome,
por capricho duma veia ou dum fonema,
ocultamente, esvai-nos.
E por detrás dele,
alheados dos ritos,
nem sabemos da sua
cessação.
Após a independência de Moçambique, o apoio à FRELIMO valeu-lhe um convite para frequentar um curso de formação em Inhanbane e a nomeação para Administrador da Província da Zambézia, cargo que abandonou passados alguns meses. Leccionou Economia Política e fixou-se, com a família, em Maputo, contactando aí com a nata intelectual de Moçambique. Um dos comparsas era o poeta Luís Carlos Patraquim, com quem terá levado a cabo algumas actividades contestatárias. Em 1982, Sebastião Alba publicou, pelas Edições 70, o livro A Noite Dividida:
Gosto dos amigos
que modelam a vida
sem interferir muito;
os que apenas circulam
no hálito da fala
e apõem, de leve,
um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
entre quem são
e quem eles me parecem,
o meu agrado inclina-se
para o mais reconciliado,
ao acordar
com a sua última fraqueza;
o que menos se preside à vida
e, à nossa, preside
deixando que o consuma
o núcleo incandescente
dum silêncio votivo
de que um fumo de incenso
nos liberta.
Pouco depois, abandonou Moçambique e regressou a Braga com a mulher e as filhas. Mais tarde, estas serão confiadas à avó materna e passarão a viver em Miratejo. Sebastião Alba continuou a publicar alguns poemas, nomeadamente na revista Colóquio/Letras. Em Braga, assumiu uma vida solitária, de andarilho, desempenhando por períodos breves algumas actividades. O vício do álcool foi-se agravando. Tentou várias curas de desintoxicação. Em 1993, o divórcio e visitas esporádicas às filhas. Morre-lhe a mãe. Michel Laban entrevista o poeta e publica o texto no volume Moçambique ─ Encontros com Escritores. Alguns amigos subscreveram um pedido de subsídio de mérito cultural, que acabou por lhe ser atribuído pelo Ministério da Cultura. Ainda assim, a rua era a nova casa de Sebastião Alba. Herberto Helder sugeriu à Assírio & Alvim a publicação da obra reunida do poeta, o que veio a acontecer em 1996:
Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame…
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.
Por essa altura, Sebastião Alba era o caso da poesia portuguesa (sempre ávida e pródiga de/em casos). Em 1997, ganhou o Grande prémio de Poesia ─ Imobiliária Teixeira & Filhos. Fez-se representar por uma das filhas e prescindiu do dinheiro a favor dos herdeiros. Alguns poemas seus foram traduzidos para alemão, recusou vários convites para iniciativas culturais, a saúde foi-se degradando. A 14 de Outubro de 2000, termina os seus dias como vítima fatal de atropelamento e fuga. O corpo permaneceu por identificar durante três dias. A 7 de Outubro, escrevia a Vergílio Alberto Vieira: «Se um dia encontrarem morto "o teu irmão Dinis", o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá».
Fonte: Uma Pedra ao Lado da Evidência, selecção e apresentação de Vergílio Alberto Vieira, Campo das Letras, Novembro de 2000. Infelizmente não consegui apurar a autoria da imagem. As minhas desculpas.
11 comentários:
Excelente. Fiquei a conhecer melhor o Sebastião Alba.
Então valeu o esforço.
tem sido um prazer visitar o teu blog. tenho "descoberto" muitos autores à conta dos textos que escreves, deixa-me que te diga.
obrigado pela entrega.
filipe
também o "albas" publicado em 2003, com organização, introdução e notas de maria de santa cruz. um dos grandes
Filipe, muito obrigado. Fico feliz por sabê-lo. Fui espreitar o teu blog. Boa malha.
Blimunda, estás fixe?
Albas, das edições quasi sempre foi, para mim, a grande referência do poeta.
De notar que a antologia da Assíro, chamada A Noite Dividida, inclui os livros O Ritmo do presságio, A Noite Dividida e o Limite Diáfano (inédito, nunca antes publicado)
A foto é de Célia Gomes e está incluída no livro Albas, edições quasi.
«Quando escreve descalça-se à entrada do poema». Fez escola, pelo menos em corpo de letra
Nuno Cruz, obrigado pelos comentários.
Fallorca, é o que parece.
esse gajo parava aqui num tasco de barcelos; morou com um hippie aqui na minha freguesia. nem sabia que era poeta.
gostei tanto tudo de ler.
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