quinta-feira, 8 de abril de 2010

TRÊS VEZES RECAMBIADO


Compreende-se melhor a obra de um artista se nos for possível enquadrá-la no seu tempo, recorrendo a dados biográficos e históricos. Ninguém olha para um quadro da mesma maneira se sobre esse olhar não pesar a informação que se julgue pertinente para a sua compreensão. Portanto, podemo-nos ficar pela mera degustação do olhar ou podemos apurar o gosto aprofundando os nossos conhecimentos. Com os poetas não é diferente. Podemos ficar simplesmente pelos poemas, aproveitando deles o gozo e a sabedoria da leitura indiferente, ou podemos intentar um diálogo com o que neles possa estar menos visível, procurando compreendê-los não só à luz que emitem mas também à luz do que dissimulam: a vida que esteve na sua origem. Para tal, é indiferente saber se Gregório de Matos nasceu a 23 de Dezembro de 1636 ou a 7 de Abril do mesmo ano. Na introdução a «Boca do Inferno» (&etc., contramargem/15, Novembro de 1982), somos informados de que o poeta nasceu em 1633. A confusão de datas há-de interessar a académicos e a astrólogos. A mim, particularmente, interessam-me outras informações. Coincidem os dados no local de nascimento: Baía de Todos os Santos. Descendente de um minhoto e de uma baiana endinheirada, estudou num colégio jesuíta e na Universidade de Coimbra. E aqui começa o que é verdadeiramente pertinente para a compreensão da sua obra. O estudo desinteressado das leis, o casamento com D. Michaela de Andrade e a amizade com Tomás Pinto Brandão apanharam-no nas tramas da poesia. Como D. Michaela era filha de juristas, o caminho para a carreira estava desbravado. Em 1663 foi nomeado Juiz de Fora de Alcácer do Sal, depois de constatada a sua pureza de sangue. Com o passar dos anos, acumularam-se os cargos. Gregório de Matos era representante da Baía nas cortes, era procurador, baptizou uma filha em Lisboa, enviúvou em 1678, foi nomeado Desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia e Tesoureiro-Mór da Sé. D. Pedro II admirava-lhe as sátiras e incumbiu-o de um inquérito que provasse a corrupção de Salvador Correia de Sá e Benevides por terras do Rio de Janeiro. O poeta recusou-se e viu-se recambiado, desta feita para a Baía e pelas altas instâncias portuguesas. Depois de 32 anos vividos em Portugal, foi destituído dos cargos que lhe restavam por recusar vestir batina e por não aceitar a imposição de ordens superiores junto ao Arcebispado. Dedicou-se à boémia, o que fica sempre bem a um poeta, satirizando padres, freiras, ricos, governantes, a promiscuidade que à época se reflectia numa carne branca que não resistia aos apelos das mulatas:

Mulatinhas da Baía
Que toda a noite, em bolandas,
Correis ruas e quitandas,
Sempre em perpétua folia:
Por que andais nesta porfia?
Com quem de vosso amor zomba?
Eu logo vos faço tromba!
Vós não vos dais por achado:
Eu encruzo o meu rapado,
Vós dizeis arromba, arromba.


Em 1680, voltou a casar. Maria de Póvoas (dos Povos?) foi a feliz contemplada, de quem teve um filho de seu nome Gonçalo. Denunciado à Inquisição pela vida libertina que levava, safou-o o prestígio familiar. Mas as ameaças continuaram. Acabou preso e novamente recambiado, desta feita para Angola. Chegou a Luanda em 1694. Aí se envolveu em conspirações militares, favorecendo o governo local. Devido ao bom comportamento, foi de novo mandado para o Brasil. Mas agora estava no Recife, onde acabou por morrer em 1695 devido a febres contraídas em África. Tinha 59 anos e muitas décimas na gaveta:

Que febre têm, tão tirana,
As moças deste lugar,
Que se estão sempre a sangrar
Na veia d’arca conana?
A doença é tão insana,
Frenética e aluada
Que, a cada lua passada,
Torna logo o sangue a vir
Sem a veia se ferir,
Porque está sempre aventada.

Eu nunca pude alcançar
Como elas ficam sangradas
Sem levarem lancetadas.
Antes fogem de as levar!
Cada mês as vem sangrar
Com os seus dois cornos, a lua,
E sem lanceta nem pua
O sangue por si se escorre,
Sua e parece que corre,
Corre e parece que sua.

O sangue, em bom português,
Com letras bem rubricadas,
Depois de muitas penadas
Põe na fralda «aqui foi mês».
Chega um galante cortês
Ao templo do amor, então,
A fazer adoração
E, qual sacristão maior,
Descobre o painel do amor
E acha uma degolação.

Isto, sem tirar nem pôr,
Me sucedeu sempre a mim
No grande Pernamerim
Onde está o templo do amor;
E entrando no interior
Do templo, que eu fabriquei,
Um rio de sangue achei.
Pus-me então a esperar
Que vase, para o passar:
Não vasou, nunca o passei.