domingo, 23 de maio de 2010

«FUI TOMADO COMO LOUCO»

Mirem-se no exemplo de Gérard de Nerval. Nasceu em Paris, de apelido Labruine, a 22 de Maio de 1808. Filho de um médico dos exércitos de Napoleão, perdeu a mãe quando tinha apenas dois anos mal feitos. Foi confiado a um tio. Regressado das guerras, Étienne Labrunie foi viver com o filho para Paris. Aí fez Gérard os seus estudos. O pai pretendia que o menino fosse médico, mas o menino trazia no sangue a doença da boémia, o vírus da literatura, a puta da poesia. Em 1822, entrou para o Collège Charlemange, tornando-se amigo de Théophile Gautier (o idealista da arte pela arte). Cada vez mais distante dos hábitos burgueses da época, Gérard de Nerval vagueava pelas ruas da cidade, assobiava contra o vento a sua crença numa poesia que lhe estabelecesse a ponte entre a realidade, ambígua e esquiva, e fantásticos mundos invisíveis, os de uma embriaguez ainda tímida. Em 1926, publicou as Elegias Nacionais e uma comédia satírica. Pouco depois, estava a traduzir o Fausto de Goethe. O sucesso da tradução garantiu-lhe algum prestígio entre os pares. Estudos de medicina, ofícios numa tipografia e num notário, não o reencaminharam na boa vida (queira lá isso dizer o que bem entender o leitor). Preso em arruaças, juntou-se a um círculo de “intelectuais” que, além de poesia e contos e teatro e etc., apreciava sobretudo a intensidade da vida. Nerval apaixonou-se pela cantora de ópera Marguerite Colon. Cartas anónimas e outros mimos não bastaram à musa, que acabou por se casar com Louis-Gabriel Leplus. Aos 26 anos, começou o bardo a viajar incansavelmente. Publicou dramas, óperas, uma revista de vida efémera, tornou-se amigo do jovem Baudelaire, com quem partilhava o gosto pelo haxixe. Passou alguns tempos, em missão oficial, na Viena de Áustria, tendo de lá regressado sem um tostão, chegando mesmo a cumprir parte da viagem a butes. Seguiu-se a Bélgica, a Alemanha na companhia de Dumas, o Levante, a primeira crise de loucura. Marguerite Colon, ou Jenny Colon, morreu em 1842. O nosso poeta ficou destroçado. Foi curar as mágoas para a Holanda, Inglaterra, traduziu Heine, começou a publicar os esquissos das suas Viagens pelo Oriente, voltando a ter mais uma crise nervosa. Entre as viagens, tornaram-se mais frequentes as suas visitas a casas de saúde. Ataques de loucura pautavam-lhe a escrita, acabando internado por diversas vezes. Em 1854, publicou As Filhas do Fogo e As Quimeras. Os internamentos motivam rumores sobre o seu desaparecimento, chegando mesmo a ser publicado um pseudo-obituário no Journal des Débats. Com o Inverno a aproximar-se e sem residência fixa, abandonou uma clínica após a intervenção da Sociedade dos Homens de Letras. Foi pior a emenda que o soneto. 1855. Nerval levava uma vida de vagabundo, tentava auxilio junto de vários amigos/conhecidos. «Na manhã de 26 de Janeiro encontram-no enforcado na rua da Velha Lanterna, à porta de um albergue nocturno, num dos locais mais imundos e sinistros de Paris». Tinha 46 anos.

VERSOS DOURADOS

Mas quê? Tudo é sensível!
Pitágoras

Homem, livre em pensar e que crês só tu ser
O Cérebro de um mundo em que tudo germina,
A tua liberdade tuas forças domina,
Sem das dos outros seres fazeres-te obedecer.

Dos animais a alma aprende a perceber…
É espírito a flor da natura eclodida.
E há um mistério de amor que até o metal anima
Tudo é sensível ─ e sobre ti tem poder.

Teme pois o olhar das paredes. As coisas
Materiais todas têm o seu Verbo discreto
Nada uses, vê bem, com um intuito ímpio.

Num ser obscuro às vezes há um deus que ignoto poisa
E, qual olhar envolto em pálpebra secreta,
No âmago da pedra há um espírito vivo.


Fontes: biografia ─ As Quimeras, trad. e intr. de Alexei Bueno, Hiena Editora, Julho de 1995; poema ─ As Filhas do Fogo, trad. Manuel João Gomes, 2.ª edição, Editorial Estampa, Março de 1997.

2 comentários:

fernando machado silva disse...

desculpa lá estar a chatear-te com isto, mas é bom ver outra pessoa interessada e escrever sobre nerval em pouco tempo:

http://donnemoimachance.blogspot.com/2010/05/gerard-de-nerval.html

abraço

hmbf disse...

Não chateias nada. Muito obrigado pela dica.