sábado, 15 de maio de 2010

«QUE ARMEM A FOGUEIRA»

Tenho descurado os meus poetas, o que é bem melhor do que tê-los descorado ou decorado. Vou indo na sombra da trovoada, com a bússola aos trambolhões e muita vontade de reaprender o mundo. Vou indo bem, muito obrigado. Reparo agora que o Amadeu Baptista fez anos há dias, mais propriamente no passado dia 6. Nasceu em 1953, no Porto. Num dos seus livros mais recentes, que por acaso é um dos meus preferidos, o acontecimento aparece versado nestes modos: «Logo no primeiro ano / estou só / e não me consigo manter de pé. // Se suspeitasse sequer / que iria ser assim para toda a vida / não me riria // com estas gargalhadas / cristalinas» (Açougue, p. 11). Parabéns. Quem lhe quiser saber da vida, é bom que comece por esse livro, Açougue, ou pel’Os Selos da Lituânia, colecções de poemas onde a carga biográfica é mais nítida. De bons poemas, excelentes poemas. Conheci o homem por intermédio do Rui Almeida. Encontrámo-nos no Parque, onde os passarinhos se deixavam fotografar pelos olhos esbugalhados dos poetas. O canto é outro assunto. Fica para os livros. Passeámos o peso pelas ruas das Caldas, viemos parar cá a casa. Eu ofereci aos meus amigos um bife com um arroz de boa memória (cozinhado pela Ana, claro). Os meus amigos ofereceram-me duas caixas com livros. E nesse gesto, como noutros similares, a vida adquire aquele sentido que teima em escapar às consciências inquietas. A minha mulher queixa-se disso, que eu interrogo-me tanto, encho a cabeça de tanta dúvida, que depois não me sobra espaço para desfrutar das pequenas boas coisas. Talvez devesse arranjar um cérebro externo para as pequenas boas coisas. Mas voltemos ao poeta. Se os livros não chegarem ao leitor, contente-se em saber que o poeta frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, semeou palavras por jornais, revistas, antologias e quejandos espalhados pelo mundo. Está traduzido em várias línguas, mas também traduziu vários poetas. Sobretudo da língua de Cervantes. Mais: fundou e co-dirigiu a publicação Babel – fascículos de poesia, e co-organizou a revista Orfeu 4. Organizou diversas e diversificadas antologias, integrou o Júri de vários prémios literários e tem vindo a amealhar outros tantos. Este é um elemento fulcral para quem um dia quiser perceber a sobrevivência dos poetas na actualidade. Amadeu Baptista, é de todos sabido, tem sido um dos mais prolixos autores da nossa contemporaneidade. Escreve imenso, publica imenso, mormente livros que vão, aqui e acolá, merecendo a confiança, a simpatia, o gosto, o respeito, a admiração dos júris a quem cabe essas decisões. Pessoalmente, não gosto tanto de alguns desses livros como gosto de outros. Quem muito escreve arrisca-se a isso. Mas desagrada-me ainda mais o descaso, ou uma certa altivez que por vezes paira no ar perante este tipo de fenómenos. É como se ganhar prémios passasse a ser defeito. No caso, o próprio autor vai explicando que não só não é defeito como é pura necessidade. Ninguém vive sem sustento, os prémios ajudam. Quem vier atrás que feche a porta... Dito isto, refira-se ainda que em 2007 o poeta arrumou 25 anos de actividade literária num único volume: Antecedentes Criminais – Antologia Pessoal 1982-2007. A estreia, está visto, data desse ano da graça de 1982. Chamava-se o livrinho As Passagens Secretas. Escrevia-se assim:

Escrevo algumas vezes pelas praias.

Recolho seixos, pequenas coisas, algas
que me fazem lembrar uma outra infância
que respirei algures num outro mar.

Palavras lisas, vocábulos minúsculos, bruma,
são búzios que manejo nos poemas,
descasco, abro
como súbita concha,
ou súbita mulher de seios brandos.

Duas ou três gaivotas, um navio lá longe,
o mar que enrola na areia
─ canções que cantei quando menino ─,

escrevo mansa, torrencial, apaziguadamente,
desperto pela brisa,
a espuma branca,
os lábios que há nas ondas.

Às vezes
pelas praias
reconheço

que pago muito pouco pela água.


Por mim falo: ainda que a cabeça me pese de tão cheia, vai-me sobrando espaço para desfrutar de pequenas boas coisas como esta. Um poema. O resto é a vida, ou, como dizia Jack London, a Lógica Branca.

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