sexta-feira, 28 de maio de 2010

SOLO DE PIANO

Já que a vida do homem não é senão uma acção à distância,
Um pouco de espuma que brilha no interior de um vaso;
Já que as árvores não são senão móveis que se agitam:
Não são senão cadeiras e mesas em movimento perpétuo;
Já que nós próprios não somos mais que seres
(Como mesmo deus não é outra coisa que deus);
Já que não falamos para sermos escutados
Senão para que os demais falem
E o eco é anterior às vozes que o produzem;
Já que nem sequer temos o consolo de um caos
No jardim que boceja e que se enche de ar,
Um quebra-cabeças que é preciso resolver antes de morrer
Para depois poder ressuscitar tranquilamente
Quando se abusou da mulher;
Já que também existe um céu no inferno,
Deixai que também eu faça algumas coisas:

Eu quero fazer um ruído com os pés
E quero que a minha alma encontre o seu corpo.



Nicanor Parra, de Poemas y Antipoemas (1954).
Versão de HMBF (também in Di Versos, n.º12).

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