segunda-feira, 31 de maio de 2010

A VÍBORA



Durante largos anos estive condenado a adorar
uma mulher desprezível,
A sacrificar-me por ela, a sofrer humilhações e mofas sem conta,
A trabalhar noite e dia para alimentá-la e vesti-la,
A levar a cabo alguns delitos, cometer algumas faltas,
A realizar pequenos furtos à luz da lua,
Falsificações de documentos comprometedores,
Sob pena de cair em descrédito ante os seus olhos fascinantes.
Em horas de compreensão costumávamos ir aos parques
E retratávamo-nos comendo uma refeição ligeira,
Ou íamos a uma danceteria
Onde nos entregávamos a um baile desenfreado
Que se prolongava até altas horas da madrugada.

Largos anos vivi prisioneiro do encanto daquela mulher
Que costumava apresentar-se completamente nua no meu escritório,Executando as contorções mais difíceis de imaginar,
Com a intenção de cativar a minha pobre alma à sua órbita
E, sobretudo, para extorquir-me até ao último centavo.
Proibia estritamente que me relacionasse com a minha família.
Os meus amigos eram afastados de mim mediante injuriosas acusaçõesQue a víbora fazia publicar num diário que era sua propriedade.
Apaixonada até ao delírio, não me dava um momento de trégua,
Exigindo-me peremptoriamente que beijasse a sua boca
E que respondesse sem demora às suas néscias perguntas,
Muitas delas sobre a eternidade e a vida depois da morte,
Temas que produziam em mim um lamentável estado de ânimo,
Zumbidos nos ouvidos, náuseas intermitentes, um prematuro
desalento,
Que ela sabia aproveitar com o espírito prático que a caracterizava
Para se vestir rapidamente sem perder tempo
E abandonar o meu sector deixando-me de mãos a abanar.

Esta situação prolongou-se por mais de cinco anos.
A espaços, vivíamos juntos numa habitação arrendada
Que pagávamos a meias num bairro de luxo perto do cemitério.
(Tivemos de interromper a nossa lua de mel algumas noites
Para enfrentarmos as ratazanas que entravam pela janela).

A víbora mantinha um minucioso livro de contas
Onde anotava até ao mínimo centavo o que eu lhe pedia de empréstimo;
Não me permitia usar a escova de dentes que eu próprio
lhe tinha oferecido
E acusava-me de lhe ter arruinado a juventude:
A lançar chamas pelos olhos, intimava-me a comparecer diante do juiz
E a pagar-lhe parte da dívida num prazo prudente
Pois ela precisava desse dinheiro para prosseguir os estudos.
Tive então de sair para a rua e viver da caridade pública,
Dormir nos bancos das praças,
Onde muitas vezes a polícia me encontrou moribundo
Entre as primeiras folhas de Outono.
Felizmente aquele estado de coisas não passou dali,
Porque certa vez em que eu também me encontrava numa praça,
Pousando à frente de uma câmara fotográfica,
Umas deliciosas mãos femininas vendaram-me subitamente
Enquanto uma voz amável me perguntava quem sou eu.
Tu és o meu amor, respondi com serenidade.

Meu anjo, disse ela nervosamente,
Permite que me sente mais uma vez ao teu colo!
Pude então verificar que ela agora apresentava-se
com uma saia muito curta.
Foi um encontro memorável, ainda que repleto de notas discordantes:Comprei um terreno, não longe do matadouro, exclamou,
E ali penso construir uma espécie de pirâmide
Onde poderemos passar os últimos dias da nossa vida.
Já terminei os estudos, recebo como advogada,
Disponho de um bom capital;
Dediquemo-nos a um negócio produtivo, os dois,
meu amor, acrescentou,
Construamos o nosso ninho longe do mundo.
Basta de sonsices, respondi, os teus planos inspiram-me desconfiança,
Pensa que de um momento para o outro a minha verdadeira mulherPode deixar-nos a todos na mais espantosa miséria.
Os meus filhos já cresceram, o tempo passou,
Sinto-me profundamente esgotado, deixa-me repousar um instante,Traz-me um pouco de água, mulher,
Encontra-me algures algo que se coma,
Estou morto de fome,
Não posso trabalhar mais para ti,
Acabou tudo entre nós dois.


Nicanor Parra, de Poemas y Antipoemas (1954).
Versão de HMBF.

2 comentários:

Nuno Dempster disse...

Conhecia mal a poesia de Nicanor Parra, e tenho-me consolado com os poemas que vai traduzindo e pondo aqui. Abraço.

hmbf disse...

Ainda bem. Outros virão.