quinta-feira, 3 de junho de 2010

A ARMADILHA


Naquele tempo eu suspeitava dos palcos demasiado misteriosos.
Como os doentes de estômago que evitam as comidas pesadas,
Preferia ficar em casa elucidando algumas questões
Relativas à reprodução das aranhas,
Com cujo objecto me recolhia no jardim
E não aparecia em público até altas horas da noite;
Ou também em mangas de camisa, em atitude desafiante,
Costumava lançar à lua iracundas observações,
Procurando evitar esses pensamentos impetuosos
Que se colam como tumores à alma humana.
Na solidão, possuía um domínio absoluto sobre mim mesmo,
Ia de um lado a outro com plena consciência dos meus actos
Ou estendia-me ao balcão da taberna
A sonhar, a idear processos, a levar a cabo pequenos problemas.
Aqueles eram os momentos em que punha em prática o meu célebre método onírico,
Que consiste em violentar-se a si mesmo e sonhar o que se deseja,
Em fomentar cenas preparadas de antemão com avisos do além.
Deste modo, conseguia obter informações preciosas
Relativas a uma série de dúvidas que afligem o ser:
Viagens ao estrangeiro, confusões eróticas, complexos religiosos.Mas todas as precauções eram poucas
Pois por razões difíceis de precisar
Eu começava a resvalar automaticamente por uma espécie de plano inclinado,
A minha alma perdia altura como um balão que se esvazia,
O instinto de conservação deixava de funcionar
E privado dos meus mais essenciais preconceitos
Caía fatalmente na armadilha do telefone
Que atrai como um abismo os objectos que o rodeiam
E com mãos trémulas marcava esse maldito número
Que ainda continuo a repetir de cor enquanto durmo.
De incerteza e de miséria eram aqueles segundos
Em que eu, como um esqueleto de pé diante dessa mesa do infernoCoberta por uma toalha amarela,
Esperava uma resposta do outro lado do mundo,
A outra metade do meu ser prisioneira numa cova.
Esses toques intermitentes do telefone
Produziam em mim o efeito das brocas dos dentistas,
Incrustavam-se-me à alma como agulhas lançadas do alto
Até que, chegado o momento fatal,
Começava a transpirar e a gaguejar febrilmente.
Parecida a um bife de novilho, a minha língua
Interpunha-se entre o meu ser e a minha interlocutora
Como essas cortinas negras que nos separam dos mortos.
Eu não desejava sustentar essas conversas demasiado íntimas
Que, não obstante, eu mesmo provocava de forma torpe
Com a minha voz agitada, carregada de electricidade.
Ouvir-me chamado pelo apelido
Nesse tom de familiaridade forçada
Produzia em mim uma náusea difusa,
Localizadas perturbações de angústia que eu procurava impedir
Através de um método rápido de perguntas e respostas
Criando nela um estado de efervescência pseudoerótica
Que à posteriori vinha a reflectir-se em mim mesmo
Sob a forma de incipientes erecções e de uma sensação de fracasso.Ria-me então à força toda caindo depois num estado de prostração mental.
Aquelas charlas absurdas prolongavam-se algumas horas
Até a dona da pensão aparecer atrás do biombo,
Interrompendo bruscamente aquele estúpido idílio,
Aquelas contorções de aspirante ao céu
E aquelas catástrofes tão deprimentes para o meu espírito
Que não terminavam por completo ao desligar o telefone
Já que, geralmente, ficávamos comprometidos
A vermo-nos no dia seguinte numa pastelaria
Ou à porta de uma igreja cujo nome não quero recordar.

Nicanor Parra, de Poemas y Antipoemas (1954).
Versão de HMBF.

Sem comentários: