sexta-feira, 4 de junho de 2010

THE HUMBLING

A convicção de que a vida é como uma tragédia grega leva os escritores a transformarem a realidade num drama ainda mais trágico do que as próprias tragédias gregas. Não admira, por isso, que quem lê muitos livros se deixe assaltar pelo mais pernicioso efeito da leitura: a depressão. A depressão é um estado que subjuga as vontades do corpo aos caprichos da mioleira, ou seja, uma espécie de ditadura do ânimo sobre todas as outras faculdades. Para alguém que atravessa os horrores da depressão, não há nada melhor que uma dor de dentes ou uma otite. São dores agudas que nos desviam dos desertos intelectuais e nos obrigam a descer à terra, ainda que por vezes possam essas dores virem a revelar-se fatais, naquele sentido de fatalidade em que a pior das soluções acaba por ser o menos insuportável dos atalhos. É o que se passa quando as pessoas resolvem pôr um termo à vida.

O caso de Simon Axler pode servir-nos de exemplo. Actor de sucesso na casa dos sessenta, vê a carreira desabar depois de se olhar ao espelho e não vislumbrar senão um homem falhado, um homem que passou a vida a viver a vida de outros homens, a representar deixas encenadas pelas exigências dos palcos onde foi ovacionado, admirado, aclamado. Mas entre os palcos dos teatros e os teatros da vida real há um fosso enorme. No caso de Simon, uma mulher com um filho toxicodependente de quem se divorciará era apenas e tão-só mais um elemento de desespero numa vida sem sentido. Acaba internado num hospital, longe dos holofotes da fama, frequentando várias formas de terapia, aprendendo com os outros pacientes que quando atingimos um certo estado de miséria e tudo fazemos para explicar aos outros o que se passa connosco, só podemos esperar dos outros uma absoluta incompreensão. Porque, afinal, o que se passa dentro de nós não só não tem explicação como é impossível de ser compreendido por quem não está dentro de nós para por nós viver aquilo pelo que estamos a passar.

Ainda que alguns encontros sejam possíveis, a solidão está longe de poder ser resolvida. E pior que nada acontecer, é fingir que nada está a acontecer. O que as pessoas dizem umas às outras em situações de desespero é quase sempre o que os desesperados não precisam de ouvir, isto é, que o seu desespero não tem razão de ser. Neste sentido, os livros de auto-ajuda são o que mais se aproxima de uma nova forma de tortura (noutro sentido, The Humbling também pode ser lido como um livro de auto-ajuda). Dizem-nos que somos uns pategos por nos sentirmos como estamos a sentir, visto não haver qualquer justificação para nos sentirmos assim. Basta ler umas tretas para que as nossas autoconfiança e auto-estima rebentem na escala da felicidade. Com Simon Axler, a ressurreição parece em marcha depois de se apaixonar pela filha de uns amigos, vinte e tal anos mais nova, lésbica em processo de experimentação hetero, com uma estimulante tendência para a depravação sexual.

Qualquer indivíduo minimamente familiarizado com a vida real, sabe de antemão que uma relação deste tipo só pode descambar em nova tragédia. De resto, é algo que parece perseguir aquele género de pessoas para quem a vida se confunde frequentemente com o acto de representar e as relações com os outros se resumem a contracenas mais ou menos ensaiadas pela instintiva capacidade que todos têm, uns mais apurada que outros, de projectar o futuro sobre os mapas do presente. Terrível é pois perceber que no momento em que Simon Axler estava, finalmente, a descarna-se do actor para ser homem, tudo venha novamente a descambar por causa das experimentações de Pegeen, a tal hetero-lésbica com quem Simon se revigorara para a vida. Se quisermos ser optimistas, diremos que entre os dois houve apenas um desajustamento temporal. Ela ainda estava na fase da representação, ele já se encontrava no estádio da presentação. O derradeiro papel de Simon Axler só podia ser, pois claro, aquele que ao longo da carreira foi encontrando nas mais diversas peças:


«Sitting there amid his books, he tried to remember plays in which there is a character who commits suicide. Hedda in Hedda Gabler, Julie in Miss Julie, Phaedra in Hippolytus, Jocasta in Oedipus the King, almost everyone in Antigone, Willy Loman in Death of a Salesman, Joe Keller in Ali My Sons, Don Parritt in The Iceman Cometh, Simon Stimson in Our Town, Ophelia in Hamlet, Othello in Othello, Cassius and Brutus in Julius Caesar; Goneril in King Lear; Antony, Cleopatra, Enobarbus, and Charmian in Antony and Cleopatra, the grandfather in Awake and Sing!, Ivanov in Ivanov, Konstantin in The Seagull. And this astonishing list was only of plays in which he had at one time performed. There were more, many more. What was remarkable was the frequency with which suicide enters into drama, as though it were a formula fundamental to the drama, not necessarily supported by the action as dictated by the workings of the genre itself. Deirdre in Deirdre of the Sorrows, Hedvig in The Wild Duck, Rebecca West in Rosmersholm, Christine and Orin in Mourning Becomes Electra, both Romeo and Juliet, Sophocles' Ajax. Suicide is a subject dramatists have been contemplating with awe since the fifth century B.C., beguiled by the human beings who are capable of generating emotions that can inspire this most extraordinary act. He should set himself the task of rereading these plays. Yes, everything gruesome must be squarely faced. Nobody should be able to say that did not think it through.»

Philip Roth, in The Humbling, Jonathan Cape - Random House, 2009, p. 38-39.

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