sexta-feira, 25 de junho de 2010

DO INCONVENIENTE DE TER NASCIDO

Do Inconveniente de Ter Nascido (Abril de 2010) é o segundo volume de E. M. Cioran (1911-1995), com tradução de Manuel de Freitas, a ser publicado pela Letra Livre no espaço de um ano. O primeiro foi Silogismos da Amargura (Maio de 2009), que dava conta, em nota de badana, da existência em língua portuguesa de mais dois livros do filósofo de origem romena: A Tentação de Existir (Relógio d’Água, 1988) e História e Utopia (Bertrand, 1994). Fica assim o leitor português com uma excelente porta de entrada para aquele que terá sido, certamente, o mais pessimista dos filósofos de expressão francesa. Apesar de ter nascido na Roménia, mais propriamente em Rasinari, na Transilvânia, Cioran partiu para Paris, em 1937, e aí se fixou mais tarde, abandonando a língua materna e adoptando a língua francesa. Para trás haviam ficado uma tese de licenciatura sobre Bergson, os primeiros períodos de esgotamento nervoso e algumas obras iniciais. O primeiro livro da fase francesa foi Précis de décomposition (1949), ao qual se seguiram Syllogismes de l’amertume (1952), La tentation d’exister (1956) e, entre outros, Histoire et Utopie (1960) e De l’inconvénient d’être né (1973).

Não se pode dizer que E. M. Cioran tenha edificado um sistema filosófico. Na verdade, a sua prática reflexiva aponta não só para a perversidade da sistematização do pensamento como mesmo para a própria impossibilidade da filosofia. A escolha do aforismo enquanto forma de expressão, à maneira dos Pensées de Blaise Pascal (1623-1662), é um dado relevante, mais ainda quando o autor coloca a sua opção nestes termos: «O aforismo? Fogo sem chama. Compreende-se que ninguém se queira aquecer com ele» (p. 136). É deste «fogo sem chama» que sobrevive o pensamento de Cioran, um pensamento desassossegado, em permanente conflito com a sua própria natureza, realizando-se no limite mais marcante das situações-limite: a consciência interna da morte. Esta consciência lança o autor num labirinto de dúvidas existenciais, do qual é impossível sair sem a sensação muito concreta da banalidade da vida, da inutilidade do pensamento, do vazio que a evidência do fim provoca a quem dela tome o significado. O aforismo resulta, neste contexto, como uma prática especialmente pertinente, pois ele tem a capacidade de nos colocar, pela sua brevidade, no extremo mais afiado da conclusão de um argumento. É como se o autor prescindisse das premissas para nos lançar de imediato nas suas conclusões, mesmo quando essas indicam o único desfecho possível para a itinerância de um raciocínio, ou seja, a voracidade do tempo e a eficácia da morte.

Não admira que a uma filosofia destas seja imediatamente associado o niilismo, mas o niilismo de Cioran sucumbe perante a total indiferença da acção. Uma certa simpatia do autor pelo hinduísmo permite-nos julgar o que aqui está verdadeiramente em causa: perante a impossibilidade de suspender a acção, luz ao fundo de um túnel sem fundo para a supressão da dor e da angústia, perante a dificuldade de transcender as sensações, entorpecidas pela tristeza e pela amargura, resta ao homem sobreviver no seio de um pavor acusado pela sua evidente insignificância. O radicalismo desta perspectiva vai a ponto de afirmar que: «Não nascer é, sem sombra de dúvida, a melhor fórmula que existe. Ela não está, infelizmente, ao alcance de ninguém» (p. 187). Sendo a nossa necessidade de consolo impossível de satisfazer, seria de esperar, no mínimo, a mesma solução para Cioran que Stig Dagerman ofereceu aos seus tormentos, mas Cioran escapa a essa tentação com o mais irónico dos fundamentos: «Não vale a pena matarmo-nos, visto que nos matamos sempre demasiado tarde» (p. 32). O que pode inspirar no leitor este tipo de argumentação? Adesão? Simpatia? Não. Apenas a percepção de uma paradoxal condição, a de que para se suportar o vazio é absolutamente necessário estar-se cheio de nada.

É natural que a certa altura esta sujeição radical da vida aos ditames da morte enfade o leitor que, apesar de tudo, logra encontrar na existência o sentido que escapa a pessimismo tão “absolutizante”. E esse sentido pode ser, por exemplo, o de não fazer sentido algum buscar sentido onde ele jamais se encontrará, permitindo ao ser, desse modo, realizar-se nas alegrias momentâneas, efémeras, superficiais da vida. Se estar vivo é estar sujeito à morte, também não deixa de ser estar sujeito à vida. Daí que a patologia que estruma o pessimismo, no seu horror de uma liberdade inexequível, descambe sempre numa espécie de nostalgia do divino e do sagrado, como aquele lugar onde pode o homem encontrar conforto para o seu desconforto, bálsamo para o absurdo, a angústia, o sofrimento. Viver depois da morte de Deus leva a estes fatalismos, a uma acusação medievalesca da miserabilidade das sensações, como se estar vivo fosse mais uma condenação do que uma bênção. Creio não haver nada mais inconsequente do que um homem revoltar-se contra a sua mais íntima condição, até porque foi isso que ele sempre fez desde que se assumiu como um macaco pensante e ocupado. A história do homem é a história da sua negação. Preferível seria que ele se deixasse de tretas e investisse um pouco do seu parco tempo na sua afirmação. Afirmar o homem significa sentir, sentir tudo de todas as maneiras, sentir até ao ponto de mais nada haver a sentir. E isso leva uma vida inteira. E às vezes nem uma vida inteira chega.

Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

sem-se-ver disse...

obg por esta noticia, nao sabia. eu sou do tempo de «A Tentação de Existir (Relógio d’Água, 1988)»... velhota, mesmo...

hmbf disse...

ora essa :-)