domingo, 9 de fevereiro de 2014

OS VÍCIOS DO MUNDO MODERNO



Os delinquentes modernos
Estão autorizados a frequentar diariamente os parques e os jardins.
Munidos de poderosos telescópios e de relógios de bolso
Entram de rompante nos quiosques protegidos pela morte
E instalam os seus laboratórios entre as roseiras em flor.
Dali controlam fotógrafos e mendigos que deambulam por perto
Procurando levantar um pequeno templo à miséria
E havendo oportunidade chegam a ter um graxista 
melancólico.
Atemorizada, a polícia foge destes monstros
Em direcção ao centro da cidade
Onde rebentam os grandes fogos de fim de ano
E um valente encapuçado assalta duas freiras.

Os vícios do mundo moderno:
O automóvel e o cinema sonoro,
As discriminações raciais,
O extermínio dos peles vermelhas,
As manhas da alta finança,
A catástrofe dos anciãos,
O comércio clandestino de brancas perpetrado por 
sodomitas internacionais,
A bebedeira e a gula,
As Pompas Fúnebres,
Os amigos pessoais de sua excelência,
A exaltação do folclore a categoria do espírito,
O abuso de estupefacientes e de filosofia,
O amolecimento dos homens bafejados pela sorte,
O onanismo e a crueldade sexual,
A exaltação do onírico e do subconsciente em detrimento 
do senso comum,
A confiança exagerada em soros e vacinas,
O endeusamento do falo,
A política internacional de pernas abertas patrocinada 
pela imprensa reaccionária,
A ambição desmedida do poder e do lucro,
As carreiras de sucesso,
A fatídica dança dos dólares,
A especulação e o aborto,
A destruição dos ídolos,
O excessivo desenvolvimento do nutricionismo e da psicopedagogia,
O vício do baile, do cigarro, dos jogos de sorte,
Os pingos de sangue que costumam encontrar-se entre os lençóis 
dos recém-casados,
A loucura do mar,
A agorafobia e a claustrofobia,
A desintegração do átomo,
O humorismo sangrento da teoria da relatividade,
O delírio do regresso ao ventre materno,
O culto do exótico,
Os acidentes aeronáuticos,
As incinerações, as purgas em massa, a retenção 
dos passaportes,
Tudo isto porque sim,
Porque causa vertigem,
A interpretação dos sonhos
E a difusão da radiomania.

Como fica demonstrado,
O mundo moderno compõe-se de flores artificiais
Que se cultivam nuns vasos de vidro semelhantes à morte,
Está composto por estrelas de cinema
E sangrentos pugilistas que combatem à luz da lua,
Compõe-se de homens-rouxinol que controlam 
a vida económica dos países
Mediante alguns mecanismos fáceis de explicar;
Vestem-se geralmente de negro como os precursores do Outono
E alimentam-se de raízes e de ervas silvestres.
Entretanto os sábios, comidos pelas ratazanas,
Apodrecem nos sótãos das catedrais,
E as almas nobres são implacavelmente perseguidas pela polícia.

O mundo moderno é uma grande pocilga:
Os restaurantes de luxo estão cheios de cadáveres digestivos
E de pássaros que voam perigosamente a escassa altura.
Isto não é tudo: os hospitais estão cheios de impostores,
Para não falar dos herdeiros do espírito que fundam 
as suas colónias no cu dos recém-operados.


Os empresários modernos sofrem por vezes o efeito da atmosfera poluída,
Junto às máquinas de tecer costumam cair doentes do espantoso mal de sono
Que, passado algum tempo, os transforma numa espécie de anjos.
Negam a existência do mundo físico
E vangloriam-se de serem uns pobres filhos do sepulcro.
Não obstante, o mundo foi sempre assim.
A verdade, como a beleza, não se cria nem se perde
E a poesia reside nas coisas ou é simplesmente uma miragem do espírito.
Reconheço que um terramoto bem concebido
Pode acabar em alguns segundos com uma cidade rica em tradições
E que um minucioso bombardeamento aéreo
Arruína árvores, cavalos, tronos, música.
Mas que importa tudo isto
Se enquanto a maior bailarina do mundo
Morre pobre e abandonada numa pequena aldeia do sul de França
A Primavera devolve ao homem uma parte das flores desaparecidas?

Tratemos de ser felizes, recomendo eu, chupando a miserável costela humana.
Extraiamos dela o líquido renovador,
Cada qual de acordo com as suas inclinações pessoais.
Agarremo-nos a esta pelanca divina!
Ofegantes e arruinados
Chupemos estes lábios que nos enlouquecem;
A sorte está lançada.
Inspiremos este perfume enervante e destruidor
E vivamos mais um dia a vida dos eleitos:
Das suas axilas extrai o homem a cera necessária para forjar o rosto dos seus ídolos.
E do sexo da mulher a palha e o barro dos seus templos.
Pelo que
Crio um piolho na minha gravata
E sorrio aos imbecis que descem das árvores.


Nicanor Parra, de Poemas y Antipoemas (1954).
Versão de HMBF.

2 comentários:

Anónimo disse...

O mundo moderno não me permite sentar a sombra da árvore e ler versos... Sou constantemente interrompida pelo barulho dos carros, das máquinas, pelo barulho do mundo...

O mundo moderno perdeu a simplicidade das coisas boas...

Abraços

hmbf disse...

Essa simplicidade conquista-se. Saúde,